1 Julho 2014

A decisão tomada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que considera “legítima” a proibição em França do uso do véu integral em locais públicos é profundamente danosa, avalia a Amnistia Internacional. Tal validação, feita esta terça-feira, constitui um recuo enorme no direito de expressão e de liberdade religiosa e envia às mulheres a mensagem de que não são livres para expressarem a sua fé em público.

O caso chegou ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), em Estrasburgo, devido à queixa apresentada por uma francesa de 24 anos, identificada apenas pelas iniciais S.A.S., a qual considera que a proibição que entrou em vigor na França em abril de 2011 viola a sua liberdade de expressão, além de outros direitos e liberdades fundamentais. Em França, as mulheres que se apresentem em público usando o véu integral (o niqab ou a burqa) podem ser penalizadas com multas e/ou serem obrigadas a frequentar formações de cidadania por força daquela lei.

“O TEDH avaliou que os argumentos [contra o véu integral] sustentados em questões de segurança e de igualdade de género eram enganadores. Mas aceitou o argumento de que o uso de véus que cobrem a cara toda vai contra normas sociais estabelecidas que são necessárias para ‘vivermos juntos’. Tal raciocínio tem forçosamente de chocar todos os que dão valor à liberdade de expressão”, frisa o diretor do programa Europa e Ásia Central da Amnistia Internacional, John Dalhuisen.

Este perito sublinha que “ao desmontarmos a decisão do TEDH à sua essência, o que nos está a ser dito é que não podemos usar véus que nos cubram a cara na totalidade porque isso causa desconforto às outras pessoas”. “E este argumento não justifica de forma nenhuma a proibição de comportamentos ou formas de expressão – religiosas ou outras – que em si mesmos não comportam nenhum dano a terceiros”, prossegue.

“Tal como o TEDH apontou repetidamente, o desconforto e o choque são o preço que as sociedades democráticas têm de pagar justamente para que seja possível ‘vivermos juntos’. A verdade é que ao forçar as pessoas a ‘viverem juntas’, esta decisão vai acabar por obrigar um pequena minoria a viver à parte, pois força efetivamente as mulheres a escolherem entre expressarem a sua fé religiosa ou estarem em público”, avalia ainda John Dalhuisen.

A decisão anunciada este 1 de julho foi pronunciada pela Câmara Superior do TEDH, o que significa que não existem já quaisquer instâncias de recurso e a mesma transita em julgado.

S.A.S. argumentou na queixa apresentada ao tribunal que a lei francesa de proibição do véu integral discrimina com base no género e na religião, viola os direitos de liberdade de expressão e de liberdade religiosa e de liberdade da vida privada, além de constituir um tratamento degradante. A queixosa afirmou aos juízes que não usa sempre o véu integral e que se predispõe a retirá-lo no contexto de identificação feita nos aeroportos, bancos e outras situações em que tal seja requisitado.

Dados do Ministério do Interior francês indicam que 1.900 mulheres usavam em 2010 o véu integral naquele país. Segundo um estudo do Instituto de Pesquisa de Mercados e de Opiniões BVA, publicado este ano no relatório do Comité nacional francês de Direitos Humanos, a perceção do islão e dos muçulmanos pela sociedade em França está a tornar-se cada vez menos tolerante – 94 por cento e 80 por cento dos franceses, respetivamente, pensam que o uso do véu integral ou do lenço islâmico é um problema.

Recorde-se que as raparigas em França não são autorizadas a usar o lenço islâmico (sob qualquer das suas formas: hijab, al-amira, xaile, khimar ou chador) nem qualquer outro símbolo religioso, de qualquer outra fé, nas escolas públicas francesas; tal é permitido porém nas universidades.

Os estereótipos e a verdade do uso do véu integral

Apesar de existirem limitações à liberdade de expressão e à liberdade religiosa que são justificáveis, a Amnistia Internacional defende que as restrições generalizadas que a legislação francesa impõe não são proporcionais nem tão pouco necessárias. Já existem leis em França que garantem que os procedimentos de confirmação de identidade sejam feitos pelos agentes das forças de segurança e policiais sempre que necessário, e com o propósito de combater a violência contra as mulheres.

“É um estereótipo assumir que todas as mulheres que usam símbolos ou se vestem de acordo com determinados padrões tradicionais ou religiosos o fazem sob coação, e nenhum país deve poder legislar de forma a afastar os direitos das mulheres, menos ainda puni-las com base numa tal generalização”, lembra ainda o diretor do programa Europa e Ásia Central da Amnistia Internacional.

Aliás, não existem quaisquer provas de que as mulheres que usam o véu integral são a isso coagidas ou forçadas. Investigações feitas pela Amnistia Internacional e outras organizações como o Open Society Institute em França concluíram que o uso do véu integral não é uma prática homogénea: algumas mulheres só o usam em algumas ocasiões, outras até por muito curtos períodos de tempo. Estas pesquisas revelaram ainda que, ao contrário do que é a convicção generalizada, as mulheres que usam o véu integral não se segregam obrigatoriamente nem rejeitam a sociedade francesa.

Além da proibição adotada em França em 2011, apenas um outro país e uma outra região aprovaram restrições semelhantes ao uso do véu integral em público: a Bélgica em 2011 e o cantão suíço de Ticino em 2013. Além destes locais, muitos municípios da região espanhola da Catalunha têm em vigor proibições locais.

Para a Amnistia Internacional, a França está claramente em dissonância do resto da Europa no que se refere a garantir a liberdade de expressão e a liberdade religiosa. Pelo que a organização de direitos humanos insta todas as autoridades relevantes a anularem estas proibições discriminatórias.

 

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