28 Janeiro 2015

 

A adoção de sanções específicas e a atribuição de responsabilidades, incluindo com a intervenção do Tribunal Penal Internacional, são necessárias com urgência para pôr fim à vaga violenta de raptos, tortura e execuções sumárias, e outros abusos, alguns dos quais constituem crimes de guerra, que estão a ser cometidos por forças rivais na Líbia – é exposto em novo relatório da Amnistia Internacional.

Neste documento – intitulado “Benghazi’s descent into chaos: abductions, summary killings and other abuses” (Bengasi imersa no caos: raptos, execuções sumárias e outros abusos) e divulgado esta quarta-feira, 28 de janeiro – é investigada uma série de abusos terríveis levados a cabo por combatentes do Conselho Shura dos Revolucionários de Bengasi, coligação de milícias islamitas e jihadistas, e também pelas forças leais ao ex-general Khalifa Haftar, o qual lançou, em revelia ao Governo, a chamada “Operação Dignidade” em maio de 2014.

“Ao longo dos últimos meses, com o agravar dos ataques retaliatórios de uma fação contra a outra, Bengasi tem vindo a cair no caos e no desgoverno. A cidade foi dilacerada por uma espiral de violência levada a cabo por grupos rivais e seus apoiantes numa busca incessante por vingança”, descreve a vice-diretora da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África, Hassiba Hadj Sahraoui. “A não ser que a comunidade internacional mostre vontade em investigar os crimes de guerra e responsabilizar quem os cometeu, é muito provável que este ciclo de abusos e de sofrimento das vítimas piore muito mais. É imperativo acabar com o clima de impunidade agravado pela falta de ordem e de lei”, insta a perita.

A Amnistia Internacional entende que o Conselho de Segurança das Nações Unidas deve adotar sanções, incluindo a proibição de deslocação e o congelamento de bens daqueles que estão envolvidos em violações de direitos humanos e da lei internacional humanitária, cumprindo, de resto, a resolução 2174, aprovada em agosto do ano passado.

A organização de direitos humanos urge também o Tribunal Penal Internacional (TPI), que tem jurisdição sobre os crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos na Líbia, a alargar as investigações de forma a incorporar os crimes de guerra e mais crimes consagrados na lei internacional que foram cometidos por todos os grupos armados e milícias desde fevereiro de 2011. Até agora o TPI apenas investigou os crimes perpetrados durante a revolta e o conflito armado em 2011.

Acordo político deve ser norteado pelos direitos humanos

Nestas últimas semanas, conversações que decorreram nas Nações Unidas, em Genebra, deram um vislumbre de esperança de que os líbios podem conseguir tirar o país da beira do abismo.

“Os esforços feitos para alcançar um acordo político não terão nenhum significado se não garantirem que as preocupações de direitos humanos são tidas em conta. Os abusos de direitos humanos cometidos pelas partes beligerantes estão a incendiar rancores e não podem ser varridos para debaixo do tapete”, sustenta Hassiba Hadj Sahraoui. “É crucial que quem participa nestas negociações assuma um compromisso sério com o Estado de direito e o respeito pelos direitos humanos. Esse é o primeiro passo essencial, mas só palavras não vão mudar a situação no terreno. Têm de ser concretizadas medidas eficazes de responsabilização para pôr fim ao ciclo de abusos”.

A vice-diretora do Programa Médio Oriente e Norte de África da Amnistia Internacional explica que “desde há longos meses que políticos e grupos armados líbios andam a lutar sobre quem é o legítimo representante do povo da Líbia, mas aquilo que se está a passar em Bengasi mostra-nos que todas as partes são responsáveis por gravíssimos abusos de direitos humanos enquanto os cidadãos líbios estão no fogo-cruzado”. “Todas as fações em conflito têm a obrigação de pôr fim a esta espiral de violência”, remata.

Quase quatro anos depois de o povo líbio se ter erguido contra o regime do coronel Muammar Khadafi, muitas das suas esperanças num futuro estável foram estilhaçadas.

A comunidade internacional – e sobretudo os países que participaram na campanha militar da NATO em 2011 na Líbia – têm a responsabilidade de se envolverem numa solução para o agravamento da situação no país, que se encontra em risco sério de escalar para um conflito ainda mais generalizado com consequências regionais muito perigosas.

Civis apanhados no fogo-cruzado das forças beligerantes

Este relatório da Amnistia Internacional desmonta a complexa rede de grupos armados por trás da vaga de violência que tomou Bengasi de assalto nos meses recentes.

“Os comandantes de todos os grupos armados de todas as fações em conflito têm de enviar uma mensagem muito clara de que tais atos não são tolerados, ou eles mesmos devem ser responsabilizados”, defende Hassiba Hadj Sahraoui.

Têm vindo a ser reportados detalhes horríveis que indicam que as forças de ambos os lados têm raptado e executado sumariamente muitas pessoas, com fotos ou vídeos dos cadáveres, frequentemente com marcas de tortura, a serem postados nas redes sociais e outros meios online.

Noutros casos, ativistas, líderes religiosos e jornalistas foram assassinados em ataques com motivações políticas. Os responsáveis permanecem desconhecidos, mas muitas pessoas em Bengasi culpam grupos ligados ao Conselho Shura dos Revolucionários de Bengasi, em especial a milícia jihadista Ansar-Sharia, que pretende impor uma interpretação rígida da lei islâmica na Líbia e é considerado um grupo terrorista pelas Nações Unidas.

Sob a bandeira do combate ao terrorismo e do restabelecimento do Estado de direito, as forças da Operação Dignidade de Khalifa Haftar lançaram uma ofensiva para recuperar o controlo de Bengasi das mãos do Conselho Shura a 15 de outubro de 2014.

Seguiram-se três meses de combates intensos e bombardeamentos indiscriminados sobre áreas residenciais da cidade, a par de ataques aéreos levados a cabo pelas forças da Operação Dignidade, resultando em danos extensos e profundos em algumas zonas, em particular em volta do porto comercial e no centro, no distrito de Al-Sabri. Muitas casas pertencentes a pessoas tidas como estando ligadas aos grupos islamitas foram vandalizadas e saqueadas, incendiadas e, em alguns casos, até demolidas.

As consequências para a população têm sido brutais. Pelo menos 90 mil pessoas foram forçadas a abandonar as suas casas devido aos combates. Os civis veem-se a braços com falta de água potável, um aumento vertiginoso dos preços dos alimentos, graves cortes de energia e falta de gás para cozinhar e também de combustíveis.

O prolongado conflito tem causado igualmente faltas de medicamentos e de equipamento clínico, assim como uma escassez de funcionários nos hospitais públicos. Alguns centros hospitalares foram evacuados depois de serem bombardeados. Todas as escolas de Bengasi têm permanecido fechadas.

Raptos e execuções sumárias

Mais de 260 pessoas – em que se incluem civis e combatentes – estão dados como desaparecidos, tendo-se-lhes perdido o rasto em Bengasi entre junho e novembro de 2014, de acordo com os dados da Sociedade Líbia Crescente Vermelho.

Muitos raptos têm sido perpetrados por grupos ligados ao Conselho Shura dos Revolucionários de Bengasi. Na maior parte dos casos, estas pessoas foram agarradas por homens encapuçados quando se encontravam em casa ou no meio da rua. Profissionais médicos têm sido também alvo de rapto, frequentemente com o objetivo de os levar para tratarem combatentes do Conselho Shura em hospitais de campo.

As forças da Operação Dignidade têm também capturado, torturado e executado sumariamente combatentes rivais e civis. Alguns foram capturados após denúncias feitas nas redes sociais ou sites online de que pertenciam a grupos armados islamitas.

Muitas famílias só descobriram que os seus familiares foram mortos ao identificarem os seus corpos em fotografias e vídeos postados no Facebook.

Em Marj, cidade a cerca de 90 quilómetros para leste de Bengasi, pelo menos 17 corpos foram largados nas ruas e fotografados; as imagens depois partilhadas nas redes sociais. A Amnistia Internacional recolheu provas de que pelo menos quatro destes homens mortos foram executados sumariamente após terem sido capturados em Bayda pelas forças da Operação Dignidade.

A irmã de uma dessas vítimas, identificado como Anas al-Khitab, contou à Amnistia Internacional que foi outro seu irmão quem viu uma foto do cadáver do irmão de ambos junto com mais quatro corpos, no Facebook: “Um relatório forense atesta que Anas foi morto com um tiro na cabeça e não menciona quaisquer marcas de tortura. Mas um familiar nosso reconheceu ferimentos no corpo que indiciam que ele foi espancado”.

 

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