12 Fevereiro 2014

A missão de paz internacional na República Centro Africana não está a conseguir parar a limpeza étnica de civis muçulmanos em curso na região ocidental daquele país, foi apurado numa missão no terreno da Amnistia Internacional, cujo relatório é divulgado esta quarta-feira.

Para proteger as comunidades muçulmanas no país, as forças internacionais de paz, mandatadas pelas Nações Unidas, têm de pôr fim ao controlo exercido pelas milícias anti-balaka (maioritariamente cristãs) e mobilizar tropas suficientes para as cidades onde os civis muçulmanos estão sob ameaça – é concluído neste novo relatório, de 12 de fevereiro, intitulado “Ethnic Cleansing and Sectarian Killings in the Central African Republic” (Limpeza Étnica e Massacres Sectários na República Centro Africana).

“As milícias anti-balaka estão a levar a cabo ataques violentos com o propósito de fazer uma limpeza étnica dos muçulmanos na República Centro Africana”, assevera a perita em resposta a situações de crise da Amnistia Internacional Joanne Mariner, a qual integrou as equipas de investigação nas mais recentes missões naquele país (em dezembro e, mais recentemente, entre 17 e 31 de janeiro). “O resultado é que está a verificar-se um êxodo de muçulmanos de proporções históricas”, avança ainda.

Os muçulmanos formam cerca de 15% da população da República Centro Africana. Mais de metade das pessoas deste país são cristãos e perto de 35% seguem credos indígenas.

A Amnistia Internacional criticou ao longo dos últimos meses a fraca resposta da comunidade internacional à crise que se vive na República Centro Africana, alertando para o facto de que as forças internacionais de paz se têm mostrado relutantes em confrontar as milícias anti-balaka e, consequentemente, em proteger a minoria muçulmana que está sob ameaça de massacres.

A investigadora e também especialista em situações de crise Donatella Rovera, que integrou igualmente esta mais recente missão da Amnistia Internacional, sublinha que “as forças de paz internacionais não conseguiram pôr fim à violência”. “Em alguns casos consentiram mesmo essa violência, ao permitirem que milícias anti-balaka abusivas preenchessem o vácuo de poder criado pela partida dos Séléka [coligação rebelde armada, maioritariamente muçulmana, que depôs o Presidente François Bozizé em março de 2013]”.

Cidades sob ameaça sem tropas internacionais de paz

Nestas últimas semanas, a Amnistia Internacional recolheu testemunhos de mais de cem pessoas sobre ataques em larga escala dos anti-balaka contra civis muçulmanos nas cidades de Bouali, Boyali, Bossembele, Bossemptele e Baoro, todas no noroeste do país. A força de paz internacional não mobilizou tropas para estas cidades, deixando as suas populações sem proteção dos ataques das milícias.

O mais brutal ataque documentado pela Amnistia Internacional ocorreu a 18 de janeiro em Bossemptele, onde pelo menos 100 muçulmanos foram mortos, Entre os mortos estão mulheres e homens idosos, incluindo um septuagenário.

Para escapar aos ataques mortais das milícias anti-balaka, comunidades muçulmanas inteiras fugiram de numerosas cidades e vilas; outros, que acabam por ficar, procuram refúgio dentro e em volta de mesquitas e igrejas.

As preocupações da comunidade internacional face à natureza de violência sectária na República Centro Africana levou o Conselho de Segurança das Nações Unidas, em resolução de dezembro de 2013, a aprovar o envio de uma força de paz internacional para o país. Esta mobilização – de cerca de 5.500 soldados da União Africana, numa missão conhecida como MISCA (Missão Internacional de Apoio à República Centro Africana), e 1.600 tropas francesas, conhecidos como “Sangaris” – foi feita essencialmente para Bangui e algumas cidades a norte e sudoeste da capital.

Até mesmo no bairro PK5, bem no coração da comunidade muçulmana em Bangui, milhares de pessoas estão a reunir os seus pertences e a prepararem-se para abandonar as suas casas, com receio de ataques dos anti-balakas.

Mas até a viagem em direção a refúgio seguro é extremamente difícil e muito perigosa. As caravanas são frequentemente atacadas pelas milícias armadas.

“Tiraram-lhes a roupa, tiraram-lhes o dinheiro. Mataram-nos”

O pequeno Abdul Rahman Yamsa, de 12 anos, contou à equipa de investigação da Amnistia Internacional que, a 14 de janeiro passado, a camioneta onde seguia com a família, em fuga de Bangui, foi forçada a parar na estrada num posto de controlo dos anti-balaka, cujos combatentes exigiram que todos os passageiros muçulmanos se apeassem. Seis familiares de Abdul foram mortos: três mulheres, incluindo a mãe, e os três irmãos, um ainda bebé.

“Os anti-balaka mandaram-nos parar. Levaram a minha mãe, o meu irmão mais velho e o meu outro irmão para a vila próxima. Tiraram-lhes as roupas, tiraram-lhes o dinheiro. Tiraram o bebé à minha mãe e puseram-no num camião. E mataram o meu irmão pequenino, partiram-no ao meio. Despiram os meus irmãos e a minha mãe. E mataram-nos. Levaram o dinheiro”, conta Abdul.

A atual vaga de violência, ódio e instabilidade é consequência direta da crise de direitos humanos na República Centro Africana que começou em dezembro de 2012, quando o movimento rebelde Séléka lançou uma ofensiva armada que acabou por culminar na deposição do então Presidente, em março de 2013.

Nos meses em que estiveram no poder, até 10 de janeiro passado, os Séléka foram responsáveis por massacres, execuções sumárias, violações, tortura e pilhagens, assim como incêndios sistemáticos e destruição das vilas e cidades de população maioritariamente cristã.

Conforme as forças dos Séléka retiravam das zonas de que ganharam controlo, as tropas internacionais permitiram então que as milícias anti-balaka entrassem nessas cidades e vilas, uma atrás da outra. A violência e expulsões forçadas das comunidades muçulmanas que se seguiram, em puros atos de vingança e ódio, eram previsíveis, sublinha a Amnistia Internacional.

A perda de controlo dos Séléka não enfraqueceu, porém, a brutalidade da sua ação na partida. Mesmo com as suas capacidades operacionais e de deslocação significativamente diminuídas, continuaram a levar a cabo ataques violentos contra civis cristãos e os seus bens. Membros das comunidades muçulmanas, armados, a agirem independentemente ou ao lado dos Séléka, foram também responsáveis por ataques sectários cruéis e em larga escala contra civis cristãos.

“A gravidade da situação exige uma resposta imediata”, alerta Joanne Mariner. “É mais que hora para as operações de paz na República Centro Africana protegerem as populações civis, para as forças de paz se mobilizarem para as áreas sob ameaça, e acabarem com os êxodos forçados”.

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