12 Fevereiro 2025

 

  • Vários gangues são responsáveis por violações dos direitos humanos contra crianças
  • Violência extrema e intimidação em Port-au-Prince e arredores
  • “A vida de demasiadas crianças no Haiti está a ser destruída” — Agnès Callamard

 

A violência implacável dos gangues em Port-au-Prince e arredores resultou num ataque brutal à infância no Haiti, afirmou a Amnistia Internacional num novo relatório.

Disponível em três línguas (ver no final do texto), o relatório “Sou uma criança, porque é que isto me aconteceu? O ataque dos gangues à infância no Haiti documenta como as crianças estão a ser sujeitas a uma série de violações dos direitos humanos, incluindo o recrutamento para gangues, violações e outras formas de violência sexual, raptos, assassinatos e ferimentos. O impacto desproporcionado nas crianças com deficiência também está documentado.

Desde o assassinato do Presidente Jovenel Moïse, em julho de 2021, a violência dos bandos armados aumentou significativamente no Haiti, causando cerca de 5 600 mortos no ano passado. Os gangues controlam a maior parte da capital, Port-au-Prince, enquanto mais de 5,5 milhões de pessoas necessitam de assistência humanitária urgente.

“Os gangues têm causado um sofrimento generalizado no Haiti. Ameaçam, batem, violam e matam crianças. Cometeram múltiplos abusos dos direitos das crianças, incluindo os direitos à vida, à educação e à liberdade de circulação”, afirmou Agnès Callamard, secretária-geral da Amnistia Internacional.

“As crianças são perseguidas e, por vezes, mortas por grupos de autodefesa, enquanto as autoridades as detêm arbitrariamente. A infância está a ser roubada”

Agnès Callamard

“A vida de demasiadas crianças no Haiti está a ser destruída e elas não têm para onde ir em busca de proteção ou justiça. São perseguidas e, por vezes, mortas por grupos de autodefesa, enquanto as autoridades as detêm arbitrariamente. A infância está a ser roubada”.

“Chegou o momento de as autoridades haitianas e a comunidade internacional, incluindo os doadores, intensificarem os seus esforços. As expressões vazias de preocupação não são suficientes. Os corpos, as mentes e os corações das crianças são violados todos os dias. O Haiti precisa de assistência urgente para proteger as crianças e evitar novos ciclos de violência”.

Estima-se que mais de um milhão de crianças vivam em áreas controladas ou sob a influência de gangues. Os investigadores entrevistaram 112 pessoas e visitaram Port-au-Prince em setembro de 2024. Os entrevistados incluíram crianças, funcionários governamentais, trabalhadores humanitários haitianos e internacionais e membros do pessoal da ONU. A investigação abrangeu violações e abusos em oito comunas do Departamento Ocidental.

Em dezembro de 2024, a Amnistia Internacional escreveu ao gabinete do primeiro-ministro Alix Didier Fils-Aimé, apresentando um resumo das conclusões. À data da publicação, não tinha sido recebida qualquer resposta.

 

O líder do gangue Jimmy 'Barbecue' Cherizier patrulha as ruas com membros do gangue G-9 na área de Delmas 3, em 22 de fevereiro de 2024, em Port-au-Prince, Haiti. Houve uma nova onda de violência em Port-au-Prince, onde, segundo estimativas da ONU, os gangues controlam 80% da cidade. Foto de Giles Clarke/Getty Images.
O líder do gangue Jimmy ‘Barbecue’ Cherizier patrulha as ruas de Port-au-Prince com membros do gangue G-9 na área de Delmas 3, em 22 de fevereiro de 2024. Houve uma nova onda de violência na cidade, onde, segundo estimativas da ONU, os gangues controlam 80% da capital do Haiti. Foto de Giles Clarke/Getty Images.

 

Violação e violência sexual

Os membros dos gangues raptaram, violaram e agrediram sexualmente raparigas durante ataques a bairros ou depois de assumirem o controlo de áreas. É frequente atacarem as raparigas quando estão na rua e atacarem-nas deliberadamente nas suas casas. Os membros dos gangues também exploram sexualmente raparigas em “relações” e para fins comerciais.

A Amnistia Internacional documentou os casos de 18 raparigas sujeitas a violação e outras formas de violência sexual por membros de gangues. Algumas foram atacadas mais do que uma vez. Em dez casos, as raparigas foram sujeitas a violação coletiva; em nove casos, foram raptadas. O direito internacional exige que os Estados protejam as crianças da exploração e do abuso sexual, incluindo a prostituição.

Duas irmãs adolescentes foram raptadas por membros de gangues quando regressavam da escola e sujeitas a violação coletiva: uma por cinco homens, a outra por seis. Uma irmã disse à Amnistia Internacional: “Penso nisso e digo a mim própria: sou uma criança, porque é que isto me aconteceu?”

Várias raparigas contaram à Amnistia Internacional que engravidaram em resultado de terem sido violadas. Como o aborto continua a ser criminalizado no Haiti, algumas recorreram a métodos pouco seguros para tentar pôr termo à gravidez indesejada.

 

Uma rapariga de 14 anos descreveu à Amnistia Internacional ter sido atingida por quatro balas em 11 de setembro de 2024, quando bandos se defrontaram depois de um árbitro de um jogo de futebol em Cité Soleil ter assinalado um penalti contestado. 22 de setembro de 2024. Foto © Amnistia Internacional
Uma rapariga de 14 anos descreveu à Amnistia Internacional ter sido atingida por quatro balas em 11 de setembro de 2024, quando bandos se defrontaram depois de um árbitro de um jogo de futebol em Cité Soleil ter assinalado um penálti contestado. Foto © Amnistia Internacional.

 

Em dezembro de 2023, uma rapariga de 17 anos que vivia em Carrefour-Feuilles foi parada por membros de um gangue quando saiu, à noite, para comprar comida. Vestidos de preto e com as caras tapadas, levaram-na para uma casa onde cinco deles a violaram à vez. Ela contou à Amnistia Internacional: “Eles disseram: ‘Não vais falar sobre isto. Se falares, matamos-te’. Depois disseram-me para me ir embora”. Mais tarde, descobriu que estava grávida: “Isso destruiu-me… Não tenho ninguém para me ajudar com o bebé”.

As crianças envolvidas em atos sexuais comerciais são vítimas de exploração sexual. Uma rapariga de 16 anos, que vive numa área sob o controlo da 5 Segon, disse que se envolveu pela primeira vez em sexo comercial com membros de gangues depois de ela e o seu filho terem passado vários períodos sem comer. Ela disse: “Não tenho escolha. Eles veem-nos e dizem: ‘Vamos embora’. Se recusarmos, batem-nos com uma arma. Um dia, posso levar um tiro. Eles agarram-nos e dão-nos pontapés. Alguns pagam, outros não”.

“Não tenho escolha. Eles veem-nos e dizem: ‘Vamos embora’. Se recusarmos, batem-nos com uma arma. Um dia, posso levar um tiro. Eles agarram-nos e dão-nos pontapés. Alguns pagam, outros não”

Rapariga de 16 anos

As raparigas sujeitas a violência sexual por membros de gangues necessitam de cuidados de saúde altamente especializados para apoiar a sua recuperação física e psicológica. No entanto, os limitados serviços de saúde no Haiti têm sido afetados pelos ataques dos gangues.

Os sobreviventes enfrentam várias barreiras à justiça por entre a impunidade geral no Haiti. Muitos entrevistados não tinham intenção de denunciar os seus ataques às autoridades devido à ausência de agentes da autoridade em áreas controladas por gangues. Uma rapariga, que foi raptada e violada por vários membros de gangues em 2023 e agredida sexualmente por um membro de gangue em 2024, disse: “Não há polícia… O único chefe na cidade são os membros dos gangues”.

 

Espancadas e ameaçadas: o recrutamento de crianças pelos gangues

A Amnistia Internacional entrevistou onze rapazes e três raparigas que foram recrutados e utilizados pelos gangues. Descreveram ter sido explorados de várias formas, incluindo para vigiar gangues rivais e a polícia, para fazer entregas, ou para fazer tarefas domésticas, trabalhos de construção e reparação de veículos. Todas as 14 crianças disseram que não tinham escolha e que agiram predominantemente por medo ou fome.

 

Um homem e duas crianças passam por um carro incendiado por gangues armados na área de Poste Marchand, na capital haitiana. Foto de Guerinault Louis/Anadolu via Getty Images.
Um homem e duas crianças passam por um carro incendiado por gangues armados na área de Poste Marchand, na capital haitiana. Foto de Guerinault Louis/Anadolu via Getty Images.

 

Um rapaz de doze anos disse que foi forçado por membros do gangue de Grand Ravine a ser informador: “Se eu não o fizesse, eles matavam-me”. Outro rapaz pré-adolescente disse que foi forçado por um gangue a andar armado para cometer atos criminosos. Disse à Amnistia Internacional: “O que fiz, não o fiz de todo o coração. Não compreendia o que estava a fazer. Peguei numa arma, não para magoar, mas para me sustentar”.

Algumas crianças foram espancadas e ameaçadas se recusassem ordens. Uma rapariga de 17 anos disse que os membros do gangue Ti Bwa a mandavam comprar prendas para as namoradas e limpar casas por apenas dois dólares americanos. Acrescentou: “Às vezes digo: ‘Não quero fazer isso’, eles gritam comigo e dizem: ‘Quando o chefe te pede para fazeres uma coisa, tens de a fazer’. Não podes dizer-lhes que não”.

A ONU e grupos da sociedade civil documentaram o assassinato de crianças e adultos que se acredita estarem associados a gangues por grupos de autodefesa conhecidos como o movimento Bwa Kale. Várias crianças disseram que tentaram esconder a sua associação com os gangues por medo de retaliação por parte dos membros da comunidade. Um rapaz disse: “Se alguém me apontar um dedo, a vida pode ser-me tirada”.

“Às vezes digo: ‘Não quero fazer isso’, eles gritam comigo e dizem: ‘Quando o chefe te pede para fazeres uma coisa, tens de a fazer’. Não podes dizer-lhes que não”

Rapariga de 17 anos

O Governo está a deter dezenas de crianças, incluindo muitas que foram alegadamente recrutadas e utilizadas por gangues, juntamente com detidos adultos numa instalação sobrelotada originalmente destinada a reabilitar rapazes. Na altura da investigação, nenhum dos rapazes tinha sido condenado porque o Tribunal de Menores de Port-au-Prince deixou de funcionar em 2019.

O recrutamento e utilização de crianças por gangues no Haiti é proibido pelo direito internacional e nacional; entre muitos outros abusos, torna as crianças vítimas de tráfico de pessoas.

 

Mortes e ferimentos

As crianças são frequentemente mortas e feridas durante as incursões dos bandos nos bairros. Nas áreas sob o controlo dos bandos, enfrentam tanto o fogo indiscriminado como o fogo direto. A Amnistia Internacional documentou os casos de dez crianças que ficaram feridas e duas que foram mortas devido à violência relacionada com gangues e incidentes associados. As suas idades variavam entre os cinco e os 17 anos. Pelo menos dois casos envolveram fogo cruzado entre gangues e a polícia.

 

Exterior do Centro de Reeducação de Menores em Conflito com a Lei, ou Centre de Rééducation des Mineurs en Conflit avec la Loi (CERMICOL), em 25 de setembro de 2024. Foto © Amnistia Internacional.
Exterior do Centro de Reeducação de Menores em Conflito com a Lei (CERMICOL, no original em francês), em 25 de setembro de 2024. Foto © Amnistia Internacional.

 

Uma rapariga de 14 anos descreveu como uma bala ricocheteada, disparada por um membro de um gangue perto de sua casa em setembro de 2024, lhe perfurou o rosto. Ela disse: “Não é uma zona calma. Há problemas a toda a hora. Há muitos tiros. Não consigo suportar os tiros”. O seu irmão foi morto três meses antes, também por uma bala perdida disparada na zona onde viviam.

Estão a ser causados danos significativos à saúde mental das crianças. Uma rapariga de treze anos tem constantemente recordações do dia em que membros de gangues ameaçaram a sua família com uma arma apontada e incendiaram a sua casa. Ela disse: “Vi cadáveres. Tenho pesadelos, não consigo dormir. Tenho visões do que vi. Costumava ser capaz de estudar sem problemas. Agora é difícil”.

 

Crianças com deficiência

As crianças com deficiência enfrentam maiores riscos quando fogem da violência, nomeadamente devido à mobilidade limitada e ao facto de terem de abandonar os dispositivos de assistência. A Amnistia Internacional entrevistou onze crianças com deficiência, incluindo crianças com deficiências físicas e psicossociais. Os investigadores documentaram condições de inacessibilidade nos locais de deslocação, bem como ataques a uma escola e a uma clínica para crianças com deficiência.

Muitos sobreviventes continuam a ter esperança de que as suas vidas melhorem. Um rapaz, que perdeu uma perna depois de ter sido atingido por um atirador furtivo, disse: “Esta história não é o fim da minha vida. Espero que a minha vida mude”.

 

Recomendações

As crianças associadas a gangues são, antes de mais, vítimas. A Amnistia Internacional apela à comunidade internacional, incluindo os doadores, a trabalhar com as autoridades haitianas e a sociedade civil para conceber um caminho de mudança em direção a soluções duradouras baseadas nos direitos humanos e para prevenir futuros ciclos de violência.

“O Governo haitiano e os doadores internacionais devem colaborar para desenvolver um plano de proteção infantil abrangente e inclusivo”

Agnès Callamard

“O Governo haitiano e os doadores internacionais devem colaborar para desenvolver um plano de proteção infantil abrangente e inclusivo”, afirmou Agnès Callamard. “Os programas para desmobilizar e reintegrar eficazmente as crianças associadas a gangues, bem como para fornecer assistência médica e jurídica abrangente aos sobreviventes de violência sexual, são uma prioridade. O Governo deve também combater a impunidade, acelerando a criação de tribunais judiciais especiais para o julgamento de graves abusos e violações dos direitos humanos”.

“O fluxo maciço de armas de fogo para o Haiti, que permite os abusos generalizados dos gangues, deve ser controlado. Os países também devem parar de deportar haitianos à força enquanto a campanha de terror das gangues e a crise mais ampla dos direitos humanos continuarem”, concluiu a secretária-geral da Amnistia Internacional.

 

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