20 Maio 2024

 

  • O Estado marroquino não está a cumprir as suas obrigações em assegurar serviços de saúde sexual e reprodutiva financeiramente comportáveis e seguros, incluindo o acesso ao aborto seguro.

 

Num novo relatório denominado My life is ruined: The need to decriminalize abortion in Morocco(em português: A minha vida está arruinada: A necessidade de descriminalizar o aborto em Marrocos), a Amnistia Internacional documenta como a criminalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) em território marroquino – mesmo nos casos em que a gravidez resulta de violação – tem consequências devastadoras para as mulheres e raparigas.

Perante as ameaças de prisão, muitas procuram clandestinamente métodos perigosos para interromper a gravidez. As que não são bem-sucedidas são coagidas a levar a gravidez até ao fim, e enfrentam potenciais acusações ao abrigo de leis que criminalizam as relações sexuais fora do casamento, o que agrava a exclusão social e a pobreza. Tudo isto, enquanto suportam os efeitos dolorosos das tentativas de aborto falhadas.

O presente relatório conta com entrevistas de 33 mulheres que recorreram à IVG. Tem também entrevistas adicionais com ONG marroquinas que trabalham no domínio dos direitos das mulheres, e profissionais da área jurídica e médica. Apesar do envio de cartas às autoridades marroquinas em março e novembro de 2023, e novamente em janeiro de 2024 – que apresentavam as conclusões do relatório e solicitavam a sua resposta para inclusão no mesmo -, não houve qualquer reação até à data da publicação desta análise.

“Nenhum Estado deve ditar as decisões sobre a gravidez e negar às mulheres e às raparigas os serviços essenciais de saúde sexual e reprodutiva, incluindo o acesso ao aborto seguro, a que têm direito ao abrigo do direito internacional. As leis, políticas e práticas discriminatórias de Marrocos negam às mulheres o seu direito a uma tomada de decisão autónoma e perpetuam um clima social que força as mulheres e as raparigas a prosseguirem com a gravidez, independentemente das consequências. Isto fomenta a violência, a pobreza e a discriminação sistémica de género”, afirmou Amjad Yamin, diretor regional adjunto da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e o Norte de África.

“Nenhum Estado deve ditar as decisões sobre a gravidez e negar às mulheres e às raparigas os serviços essenciais de saúde sexual e reprodutiva, incluindo o acesso ao aborto seguro, a que têm direito ao abrigo do direito internacional”

Amjad Yamin

“Há anos que as organizações marroquinas apelam às autoridades do país para que despenalizem a IVG e garantam que ninguém é maltratado, humilhado, ou corre o risco de sofrer sanções penais ou exclusão social por procurar ou obter acesso ao aborto. Este relatório e esta campanha baseiam-se nesses esforços e reiteram que, ao abrigo do direito internacional, todas as pessoas que necessitem de recorrer à interrupção voluntária da gravidez devem poder ter acesso a essa prática com respeito pela sua privacidade, confidencialidade e consentimento informado. Os serviços de saúde sexual e reprodutiva abrangentes, acessíveis e a preços razoáveis para todos, especialmente os que têm baixos rendimentos ou vivem na pobreza, devem ser prestados através do sistema público de saúde.”

 

“Não podemos ajudar as mulheres. Temos as mãos atadas”

O Código Penal marroquino proíbe a IVG, exceto se for realizada por um médico ou cirurgião autorizado e considerada um procedimento necessário para salvaguardar a saúde ou a vida da mulher. As pessoas que praticam ou tentam praticar uma IVG podem ser condenadas a penas de prisão que variam entre seis meses e dois anos, juntamente com multas, bem como a penas de prisão adicionais ao abrigo de disposições que criminalizam as relações sexuais fora do casamento.

O Código Penal marroquino proíbe a IVG, exceto se for realizada por um médico ou cirurgião autorizado e considerada um procedimento necessário para salvaguardar a saúde ou a vida da mulher

As leis que proíbem a divulgação de informações relacionadas com a IVG limitam, ainda mais, o acesso a recursos de saúde cruciais, negando às mulheres a capacidade de tomar decisões informadas sobre este aspeto das suas vidas.  Ações ou iniciativas que sejam entendidas como “incitamento ao aborto” por qualquer meio, mesmo que seja através de discurso público ou distribuição de materiais relacionados, implica penas até dois anos de prisão e/ou multas.

Os profissionais de saúde que realizem IVG em violação da lei arriscam-se a perder as suas licenças. Além disso, caso sejam inquiridos, devem também testemunhar e revelar informações sobre as IVG de que têm conhecimento, comprometendo a confidencialidade das pacientes.

“O que podemos fazer como médicos? Nada! […] As nossas mãos estão atadas”

Médico marroquino

Estas restrições, agravadas pela ausência de diretrizes ou protocolos médicos sobre a realização de IVG legais, deixam muitas mulheres sem uma via segura. Um médico partilhou à Amnistia Internacional: “O que podemos fazer como médicos? Nada! Não podemos ajudar as mulheres. As nossas mãos estão atadas. Sentimo-nos frustrados por não podermos apoiar as mulheres e facultar-lhes a ajuda que procuram”.

 

Uma manifestante segura um cartaz onde se lê em francês “saiam do meu útero”, durante um protesto em frente a um tribunal onde decorre o julgamento de Hajar Raissouni, jornalista marroquina do jornal diário Akhbar El-Youm, acusada de fazer um aborto. Rabat, 9 de setembro de 2019. (Foto de FADEL SENNA / AFP)

 

IVG na clandestinidade

Por norma, as mulheres não têm outra opção senão recorrer a IVG não-regulamentadas, inseguras e muitas vezes dispendiosas, que ocorrem em segredo. Para este relatório, as mulheres descreveram o recurso a vários métodos de aborto perigosos, como a utilização abusiva de produtos farmacêuticos, a ingestão de misturas químicas perigosas e até mesmo a violência física: autoinfligida ou infligida por terceiros.

Algumas mulheres tentaram mesmo pôr termo à sua própria vida. Quatro delas, entrevistadas pela Amnistia Internacional, necessitaram de tratamento hospitalar de emergência devido a complicações de saúde graves resultantes de tentativas inseguras para a realização de IVG.

As mulheres descreveram o recurso a vários métodos de aborto perigosos, como a utilização abusiva de produtos farmacêuticos, a ingestão de misturas químicas perigosas e até mesmo a violência física: autoinfligida ou infligida por terceiros

Farah* foi violada por um colega quando estava inconsciente, na sequência de um ataque de diabetes. Dois meses depois, descobriu que estava grávida e procurou ajuda junto de um ginecologista que se recusou a efetuar uma IVG. O seu chefe suspendeu-a para evitar o que ele considerava ser “um prejuízo para a reputação da sua empresa”, caso ela viesse a ser processada por relações sexuais fora do casamento. Farah tentou interromper a gravidez sozinha, mas acabou por ser forçada a levar a gravidez até ao fim, apesar dos ferimentos e infeção que sofreu.

A resposta insuficiente de Marrocos à violência contra as mulheres fomenta uma cultura de impunidade, permitindo que os autores de violação, de violência nas relações íntimas e de assédio sexual atuem livremente. Dez mulheres relataram à Amnistia Internacional que ficaram grávidas após violações, cometidas por estranhos, vizinhos, namorados ou maridos. O acesso das vítimas de violação a um recurso é prejudicado pelas duras penas impostas pelo Código Penal às relações sexuais entre pessoas não casadas. A criminalização e a estigmatização da IVG em Marrocos também afetam as mulheres que têm gravidezes indesejadas devido às falhas na contraceção, à falta de acesso aos meios contracetivos ou às privações económicas.

“Em Marrocos, as mulheres devem ter a possibilidade de exercer os seus direitos sexuais e reprodutivos através do acesso a informação e serviços de saúde sexual e reprodutiva abrangentes, incluindo contracetivos modernos e o acesso ao aborto seguro”, sublinha Saida Kouzzi, sócia fundadora da Mobilising for Rights Associates, parceiros de campanha da Amnistia Internacional.

A resposta insuficiente de Marrocos à violência contra as mulheres fomenta uma cultura de impunidade, permitindo que os autores de violação, de violência nas relações íntimas e de assédio sexual atuem livremente

 

Crueldade e discriminação contra mulheres solteiras

O Código Penal de Marrocos penaliza as relações sexuais entre indivíduos não casados, com um mês a um ano de prisão. O adultério acarreta uma pena de um a dois anos de prisão. Esta situação não só conduz à exclusão social, como também agrava a exclusão económica das mulheres obrigadas a levar a gravidez até ao fim. Por outro lado, as mulheres presas por estes atos e que ficam com registo criminal também se deparam com barreiras adicionais e estigma na procura de emprego e sofrem frequentemente de isolamento social.

O Código Penal de Marrocos penaliza as relações sexuais entre indivíduos não casados, com um mês a um ano de prisão. O adultério acarreta uma pena de um a dois anos de prisão

Ouiam* é uma viúva com um filho, que foi presa por ter tido relações sexuais fora do casamento. Ela própria tentou abortar, sem sucesso: “Como mãe solteira, vivo aterrorizada na minha aldeia, ninguém fala comigo… As pessoas da aldeia tratam-me pior do que nunca”.

Aos filhos de mulheres solteiras forçadas a levar a gravidez até ao fim, é negada a identidade legal devido a leis que apenas reconhecem a filiação paterna no âmbito de casamentos legais. O Código da Família nega a estas crianças o direito de usar o nome do pai biológico ou de receber apoio financeiro ou herança, fomentando a pobreza e a discriminação contra elas. Além disso, o Código do Estado Civil não garante às mulheres solteiras o direito de obter um boletim de família, essencial para registar o nascimento e ter acesso a documentos oficiais que permitam beneficiar de serviços básicos como cuidados de saúde, educação, assistência jurídica e apoios sociais.

“Como mãe solteira, vivo aterrorizada na minha aldeia, ninguém fala comigo… As pessoas da aldeia tratam-me pior do que nunca”

Ouiam*

“As mulheres corajosas que partilham as suas histórias comoventes neste relatório são inspiradoras e exigem ação. É tempo de as autoridades marroquinas darem prioridade aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e das raparigas, e acabarem com o silêncio e a negligência do Estado em relação à interrupção voluntária da gravidez. Devem adotar leis que protejam os direitos e a autonomia reprodutiva, que descriminalizem a IVG e que garantam a igualdade de acesso a cuidados de saúde abrangentes, incluindo o acesso ao aborto seguro”, afirmou Stephanie Willman Bordat, sócia-fundadora da Mobilising for Rights Associates (MRA), parceira de campanha da Amnistia Internacional.

* nome verdadeiro ocultado para proteger a identidade

 

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