10 Dezembro 2014

 

30 anos da Convenção contra a Tortura

A marcar o 30º aniversário da aprovação da Convenção contra a Tortura nas Nações Unidas, este 10 de dezembro, o Relator Especial da ONU para a Tortura, Juan Mendez, que pressiona os países a acabarem com a desprezível prática, e ele mesmo um sobrevivente de tortura na Argentina, evoca neste artigo a sua angustiante experiência e os desafios que se enfrentam na luta global contra a tortura.

Numa manhã fria de 1975, o jovem advogado argentino de direitos humanos Juan Mendez viu dois polícias a avançarem vigorosamente na sua direção, numa rua tranquila de Buenos Aires, e percebeu imediatamente que estava em enorme perigo.

Eram tempos de revolta. Numa altura em que a violenta junta militar estava a tomar o poder pela força, o trabalho de Mendez em defesa dos presos políticos era um trabalho de elevado risco, de risco de vida.

Sem dizerem uma só palavra, os polícias agarraram Juan Mendez, vendaram-no e enfiaram-no num carro. Levaram-no para a esquadra e algumas horas depois entregaram-no aos agentes dos serviços secretos.

“Eu sabia bem que todos aqueles que eram acusados de ‘subversão’ eram torturados impiedosamente. A primeira coisa em que pensei quando a polícia me levou é que tinha de me manter forte e não lhes dizer nada que pudesse conduzir à detenção e tortura de outros”, recorda.

As suspeitas estavam certas. O interrogatório, que se arrastou ao longo de três dias, foi implacável. Os interrogadores eletrocutaram-no enquanto lhe faziam perguntas sobre o seu trabalho e as pessoas que conhecia. Fizeram o inimaginável para o forçar a revelar nomes, moradas, números de telefone e tudo mais que pudesse levar a mais detenções e a mais tortura.

Numa das ocasiões, um polícia enfiou-lhe uma pistola na boca e premiu o gatilho. A arma não tinha balas.

“Tive muito medo durante os interrogatórios. Por duas vezes tiveram de chamar um médico para se certificarem que podiam continuar a torturar-me sem me matarem. Só aí é que me dei conta de que podia morrer ali. Mas, numa situação como aquela, uma pessoa vive minuto a minuto, consumido por aquilo que lhe está a acontecer e a pensar apenas no momento em que os torturadores se vão cansar e parar para que tenhamos um descanso”, explica.

Ao terceiro dia e sem qualquer aviso nem explicação, Juan Mendez foi transferido para uma prisão. Ficou detido 18 meses, sem nenhuma acusação, até que finalmente o libertaram e o obrigaram a partir em exílio. Puseram-no num avião rumo a França, onde se reencontrou com a mulher e os filhos, que já viviam fora da Argentina.

“À chegada a França senti um misto de emoções pois sabia que estava a deixar muita gente para trás, em situações horríveis. E eu tivera a sorte de conseguir partir, mas era muito difícil começar de novo com uma família ainda tão jovem. Durante todos os anos que passei fora estive sempre obcecado com tudo o que acontecia na Argentina. Mudei-me para Washington e aí permaneci em constante comunicação com grupos de direitos humanos e acabei por me especializar no tema da tortura”, evoca.

Ao longo dos oito anos de brutal ditadura na Argentina, milhares de pessoas foram detidas arbitrariamente, levadas para centros de detenção secretos e torturadas, muitas como castigo pelo trabalho legítimo que desenvolviam em defesa dos direitos humanos. Até hoje, 30 mil pessoas continuam dadas como desaparecidas.

Histórias semelhantes de tortura e outros maus-tratos foram emergindo de todos os cantos do mundo, mas só com a publicação pela Amnistia Internacional do estudo pioneiro sobre tortura em 1973 é que a verdadeira extensão do recurso àquelas práticas desumanas veio à luz.

O documento de 225 páginas foi o motor de arranque da primeira campanha global de sempre contra a tortura. Ativistas de todo o mundo encheram as ruas exigindo respostas e ação dos seus governos, celebridades juntaram-se a estas vozes, falando sobre a continuação daquela prática ilegal e brutal no mundo. Inspirados por este movimento, advogados começaram a redigir um tratado que fornecesse ferramentas concretas para prevenir e julgar a tortura como um crime internacional – eram os primeiros passos para uma convenção internacional que vincularia os Estados signatários à obrigação de investigarem denúncias de tortura onde quer que estas ocorressem e a julgarem os responsáveis.

O guardião da Convenção

Ao fim de anos de debate sério, e às vezes bastante acalorado, a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes (UNCAT) foi aprovada na Assembleia Geral das Nações Unidas  em 1984.

Foi um momento histórico. “A Convenção contra a Tortura constitui um marco extremamente significativo na luta contra a tortura porque incorpora obrigações muito específicas dos Estados para investigarem, julgarem e punirem todo e cada incidente de tortura”, descreve o relator da ONU.

Entre os 33 artigos do tratado, os países acordaram criar o Comité contra a Tortura para vigiar e superintender o seu cumprimento. Em 1985 foi criado o cargo de Relator Especial das Nações Unidas para a Tortura – e ao contrário da Convenção, o mandato deste relator não está limitado aos países que assinaram e ratificaram o tratado, antes abrange todos os Estados-membros da ONU.

Qualquer vítima de tortura ou outros maus-tratos pode queixar-se diretamente ao Relator Especial para a Tortura, o qual depois questiona o Governo em causa e, no mínimo, faz exigências implícitas de ação às autoridades. O Relator Especial visita prisões e presos em todo o mundo (a convite dos Estados) e reporta as suas observações e conclusões anualmente à Assembleia Geral das nações Unidas e ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Em 2010, Juan Mendez foi nomeado Relator Especial para a Tortura. Nessa altura sentiam-se ainda os efeitos do desafio colocado pelos Estados Unidos à proibição da tortura na resposta que o país deu às atrocidades dos ataques de 11 de setembro de 2001.

“Antes do 11 de setembro tínhamos um consenso claro, um consenso moral em todo o mundo de que a tortura era inaceitável e que não existia nenhuma circunstância que a pudesse justificar. Isto permanece verdade em termos legais, mas no que toca à perceção do público creio que perdemos terreno devido aos medos do terrorismo e do crime comum urbano. Assistimos a um sentimento de que a tortura é inevitável, necessária e, de alguma forma, aceitável”, frisa Juan Mendez.

David contra Golias

Mendez acha que o trabalho de Relator Especial para a Tortura é, às vezes, impossível.

Com o mandato de manter sob vigilância 194 países é de esperar um gabinete com uma numerosa equipa, com peritos e apoio administrativo. Mas não é assim. É apenas Juan Mendez e um funcionário a tempo parcial. Por vezes é uma luta de David contra Golias.

“Se tivéssemos os recursos necessários, conseguíamos fazer muito mais. Temos uma série de limitações financeiras, pelo que só podemos fazer um par de missões por ano. Mas o maior problema é a falta de apoio por parte dos governos”, explica.

A ausência de vontade política dos governos que frequentemente ignoram os seus pedidos de visita, ou que os recusam mesmo sem qualquer explicação, é o que mais frustra Juan Mendez.

Nestes últimos quatros anos no cargo, o Relator Especial da ONU para a Tortura visitou mais de uma dezena de países, incluindo o México, Tajiquistão, Marrocos, Tunísia e Quirguistão. Muitos outros fecharam-lhe a porta na cara – como foi o caso do Bahrein e da Guatemala – ou nem sequer lhe responderam aos pedidos de visita.

Parte do trabalho de Juan Mendez é persuadir os governos a aceitarem as suas visitas, nos seus termos. Ele insiste em ter acesso ilimitado a todos os centros de detenção e prisões e poder falar com todos os que ali se encontram, sem a presença de polícias nem guardas. Mas muitos são os governos que não aceitam ser inspecionados.

“Algumas das nossas experiências foram muito frustrantes. Por exemplo, acabei de regressar de uma missão à Gâmbia e após lá estar o Governo decidiu mudar as condições da visita para termos que nós não podíamos aceitar, pelo que acabámos por não ir às prisões. A Administração norte-americana também tem sido um desafio difícil: há três anos que peço para visitar a prisão de Guantánamo, o que as autoridades dos Estados Unidos aceitaram, mas apenas na condição de que não me seria permitido falar com os presos – por isso não o pude aceitar. Além disto, jamais me responderam aos meus pedidos para visitar prisões dentro do território norte-americano”, conta.

Quando as visitas são feitas, o Relator Especial para a Tortura junta uma equipa altamente qualificada de consultores e voluntários que inclui investigadores, advogados e peritos forenses, os quais o acompanham nas missões.

Estas equipas inspecionam as prisões, os centros de detenção pré-julgamento, as esquadras de polícia, instituições de saúde mental e centros de detenção de imigrantes, onde falam com as pessoas detidas em privado sobre o tratamento que recebem. Apesar de a missão a um determinado país ser sempre coordenada com o respetivo Governo, as visitas específicas Às prisões são conduzidas sem aviso prévio de forma às autoridades não saberem onde nem quando a equipa vai aparecer a bater-lhes à porta.

30 anos de tortura

Juan Mendez sustenta que a luta contra a tortura é muito trabalhosa, mas reconheceu que também já houve muitos sucessos.

A detenção em solitária é já considerada generalizadamente uma forma de maus-tratos e alguns países aprovaram leis que proíbem a tortura.

O Relator Especial da ONU para a Tortura mantém, mesmo assim, que ainda temos muitos desafios pela frente até que a tortura seja absolutamente erradicada.

“A única forma real de eliminar a tortura é garantir que os responsáveis pela prática são julgados. É o ciclo de impunidade da tortura que a mantém viva. A Convenção constituiu um avanço muito positivo, mas o verdadeiro desafio está em assegurar que os Estados assumem uma linha de ação agressiva e decisiva para pôr fim à tortura. Isso não vai acontecer de um dia para o outro, mas pode vir a acontecer”, defende Juan Mendez.

Artigos Relacionados