3 Abril 2014

A empedernida cultura de impunidade, o racismo enraizado e uma violência endémica, em que se incluem o recurso frequente ao uso da força contra manifestantes e maus-tratos de migrantes e refugiados, são expostos numa investigação da Amnistia Internacional à polícia na Grécia. Divulgado esta quinta-feira, 3 de abril, este relatório segue-se, aliás, a uma investigação oficial naquele país em que foram analisadas as ligações da polícia ao partido de extrema-direita Aurora Dourada.

Até dezembro passado quase 50 pessoas, em que se incluem o líder do Aurora Dourada, dois polícias e cinco deputados, foram detidos e acusados de crimes que abarcam o homicídio, uso de explosivos e chantagem. Dez agentes da polícia foram incriminados por terem ligações diretas ou indiretas a atividades criminosas atribuídas a membros do Aurora Dourada.

Agora, o relatório da Amnistia Internacional “A law unto themselves: A culture of abuse and impunity in the Greek police” (Uma lei à parte: A cultura de abusos e de impunidade na polícia grega), expõe a claro as muitas e persistentes violações de direitos humanos cometidas por agentes das forças de segurança na Grécia. Esta investigação detalha em pormenor a natureza enraizada da falta de atribuição de responsabilidades e o falhanço total das autoridades gregas em conduzirem inquéritos completos e imparciais às denúncias e queixas de má conduta policial no país.

“A nossa investigação comprova que o escândalo do Aurora Dourada é apenas a ponta do icebergue. Um racismo enraizado, o recurso ao uso excessivo da força e uma arreigada cultura de impunidade são uma praga na polícia grega. Governos sucessivos têm-se revelado incapazes não apenas em reconhecerem, quanto mais em resolverem, estas violações de direitos humanos cometidas pela polícia, e a impunidade generalizada”, frisa a vice-diretora do programa Europa e Ásia Central da Amnistia Internacional, Jezerca Tigani.

É claro, assim, “que estamos perante a necessidade urgente de ser encetada uma reforma abrangente e estrutural das forças de segurança na Grécia, incluindo a criação de um mecanismo independente que investigue as alegações e denúncias de má-conduta policial”. “As autoridades gregas têm de restaurar a confiança pública nas estruturas das forças de segurança do país”, avalia ainda.

A Amnistia Internacional documenta há muitos anos a conduta ilegal e ilegítima da polícia grega. Esta nova investigação analisa o que se passou ao longo dos últimos dois anos, chegando à conclusão que a situação permanece desoladora.

Em finais de março passado, guardas da Prisão Nigrita, no norte da Grécia, terão espancado até à morte um preso que se encontrava em detenção solitária. A autópsia revelou que o preso sofrera um espancamento intenso nas solas dos pés e no peito, e apresentava ainda queimaduras nas mãos.

Desde 2011 que é registado um aumento drástico nos ataques contra refugiados e migrantes naquele país; foram documentados crimes de ódio também contra a comunidade cigana e a comunidade LGBTI (lésbica, gay, bissexual, transgénero e intersexual). E as forças de segurança não agiram de maneira a prevenir a não ocorrência destes ataques ou não investigaram o motivo de ódio que os suscitou.

“Este comportamento da polícia grega é favorável à ação dos grupos de extrema-direita e xenófobos, os quais visam atacar qualquer pessoa que não se enquadre e conforme à ideia que eles têm do que a sociedade deve ser”, nota Jezerca Tigani.

“Além disso, a polícia é usada indiscriminadamente como uma ferramenta pelas autoridades: em vez de manterem a ordem e a paz, é-lhes atribuída muitas vezes a tarefa de sufocarem a dissidência e perseguirem membros dos grupos sociais mais vulneráveis. A ação policial está sem monitorização independente e as suas transgressões ficam por punir. E isto tem de mudar”, sustenta a vice-diretora do programa Europa e Ásia Central da Amnistia Internacional.

Morto às mãos do Aurora Dourada

Pavlos Fyssas, músico e ativista anti-fascista, foi esfaqueado mortalmente a 17 de setembro de 2013, em Keratsini, nos subúrbios de Atenas, por um membro do Aurora Dourada, sem que os oito agentes de polícia que se encontravam por perto fizessem algo para o salvar.

No dia seguinte, a polícia antimotim saiu às ruas armada de bastões e gás lacrimogéneo para dispersar os manifestantes que protestavam contra a morte de Pavlos Fyssas. Pelo menos 31 pessoas tiveram de ser assistidas clinicamente, muitas apresentando ferimentos na cabeça. Os manifestantes denunciaram terem sido espancados pela polícia com bastões, capacetes e escudos, e apedrejados por membros de grupos da extrema-direita enquanto a polícia antimotim nada fez para os proteger.

Um desses manifestantes, Gavril, de 32 anos, foi ferido num dos olhos e perdeu a visão apesar de ter sido sujeito a três cirurgias até outubro de 2013.

Foi o caso do homicídio de Pavlos Fyssas que fez abrir uma investigação por parte da polícia às atividades do Aurora Dourada e às ligações deste grupo às forças de segurança.

Tratamento brutal de refugiados e migrantes

A polícia grega tem a tutela de controlar os fluxos de migração e de deter e deportar os migrantes ilegais. No âmbito da operação de larga escala Xenios Zeus, que ocorreu entre abril de 2012 e junho de 2013, foram detidos mais de 120 mil cidadãos de outros países em rusgas de controlo de identidade. Destes, apenas sete mil – ou seja, uns cinco por cento – foi comprovado não terem documentos de identificação.

Um refugiado sírio ouvido pela Amnistia Internacional descreveu a forma como foi tratado pela polícia no centro de detenção de migrantes de Corinth em fevereiro de 2013: “Um polícia começou a pontapear-me. Tentei levantar-me e ele atirou-me ao chão outra vez e depois pediu ajuda a outros dois polícias, que me levaram para uma sala, onde nenhum dos outros detidos me podia ver. Aí o polícia começou a dar-me pontapés no peito, depois outro esbofeteou-me e começou a esmurrar-me a cara”.

Crimes de ódio

Em janeiro de 2013, dois cidadãos gregos mataram à facada S. Lugman, um paquistanês a residir na Grécia – na investigação ao caso, nem a polícia nem os procuradores avaliaram o racismo como provável motivo do ataque. A morte de S. Lugman apresentava, porém, muitos dos elementos que estão presentes nos ataques racistas organizados feitos por “esquadrões” ligados ao Aurora Dourada. Este caso está atualmente em julgamento em tribunal.

Já em setembro de 2013, uma mulher grega foi filmada a pontapear uma rapariga da comunidade cigana que tocava acordeão numa rua junto à Acrópole, em Atenas. A investigação policial a este incidente, e aos alegados motivos de crime de ódio, só arrancou depois de uma forte pressão exercida pela organização não-governamental grega de defesa dos direitos humanos Greek Helsinki Monitor.

 

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