20 Janeiro 2015

 

Os Governos europeus que cooperaram com o programa de detenções secretas, transferências, interrogatórios e recurso à tortura da Central Intelligence Agency (CIA), integrado na “guerra ao terrorismo” a nível global dos Estados Unidos, têm de agir urgentemente para levar os responsáveis à justiça, na esteira da divulgação do sumário do relatório do Senado norte-americano, sustenta a Amnistia Internacional.

A investigação “Breaking the conspiracy of silence: USA’s European ‘partners in crime’ must act after Senate torture report” (Romper a conspiração do silêncio: os países europeus ‘parceiros no crime’ dos Estados Unidos têm de agir face ao relatório do Senado sobre tortura) relaciona as revelações avançadas pela Comissão de Serviços Secretos do Senado norte-americano e as informações que se foram obtendo publicamente por outras fontes sobre as alegações da existência de locais de detenção mantidos em segredo na Lituânia, na Polónia e na Roménia.

Outros países, apontados como cúmplices por outras fontes, incluindo órgãos de comunicação social, terão cooperado naquelas operações da CIA: é o caso da Alemanha, da Macedónia e do Reino Unido.

Em alguns casos, aqueles países identificados como cúmplices conspiraram com a CIA em troca de milhões de dólares.

A investigação da Amnistia Internacional também destaca as respostas desadequadas que estes Governos têm dado para levar a cabo investigações totais e eficazes.

“Sem a ajuda da Europa, os Estados Unidos não teriam sido capazes de deter secretamente e torturar pessoas durante tantos anos. O relatório da Comissão de Serviços Secretos do Senado norte-americano demonstra de forma bastante clara e abundante que Governos estrangeiros foram essenciais no ‘sucesso’ das operações da CIA – e as provas que têm vindo a acumular-se durante quase uma década apontam para alguns aliados-chave europeus”, sublinha a perita da Amnistia Internacional em antiterrorismo e direitos humanos, Julia Hall.

A perita não hesita: “O tempo dos encobrimentos e dos desmentidos acabou”. “Os Governos não podem continuar a invocar razões infundadas de ‘segurança nacional’ nem argumentar com segredos de Estado para esconderem a verdade sobre o papel que desempenharam nos desaparecimentos e tortura das pessoas. É mais do que chegada a hora para se obter justiça para todos os que sofreram com aquelas práticas macabras – incluindo o waterboarding [simulação de afogamento], a violência sexual e simulações de execução –, que caracterizaram estas operações ilegais de antiterrorismo”, prossegue.

“O espantoso distanciamento dos Estados Unidos dos princípios do Estado de direito desde os ataques de 11 de setembro de 2001 serve de clara advertência para todos os Governos que se veem a braços com este tipo de crimes violentos. Pôr de lado os direitos humanos e as liberdades civis é moral e legalmente errado, aliena certas comunidades, e envia um sinal muito perigoso a outros Governos tendentes a violarem os direitos dos cidadãos com o argumento da ‘segurança nacional’”, frisa Julia Hall.

Para a Amnistia Internacional, “todas as leis, políticas e práticas de antiterrorismo têm de ter no cerne a defesa dos direitos humanos e da dignidade de todas as pessoas”. “Este princípio é tão mais importante no momento especialmente sensível que se vive atualmente na Europa, com a França e outros países a digerirem os terríveis ataques de Paris”, nota ainda a perita da organização de direitos humanos.

O relatório do Senado norte-americano desencadeou uma série de reações de antigos e atuais líderes e responsáveis governamentais europeus, incluindo admissões cruciais de envolvimento nas operações da CIA.

Aquela investigação dos Estados Unidos não nomeia explicitamente nenhuns países europeus, mas informações credíveis avançadas por fontes citadas por órgãos de comunicação social e outras informações a que a Amnistia Internacional teve acesso interligam de forma clara e repetidamente precisa muitos pormenores sobre os centros de detenções secretos e atortura levada a cabo pelo Estados Unidos com a ajuda dos Governos de países aliados.

Entre eles, estão:

  • Polónia: Na esteira da divulgação pública do sumário do relatório do Senado norte-americano, dois antigos responsáveis governamentais polacos admitiram finalmente que a Polónia acolheu um centro de detenção secreto da CIA. O relatório norte-americano refere o chamado “Centro de Detenção Azul” e avança detalhes sobre o local que são mencionados em informações já tornadas públicas sobre uma prisão secreta da agência americana de serviços secretos na Polónia. Estas revelações seguiram-se a já duas decisões do Tribunal Europeu de Direitos do Homem, em julho de 2014, em que é assinalada a cumplicidade da Polónia no programa de capturas, transferências e detenções secretas dos Estados Unidos. As técnicas de interrogatório a que foram submetidos um ou mesmo ambos os homens, cujos casos deram origem àqueles processos, incluem o waterboarding, a simulação de execução com armas não carregadas, ameaças com um berbequim em funcionamento junto à cabeça, entre outras das chamadas “técnicas de interrogatórios extremas”. A investigação criminal na Polónia, iniciada em 2008, foi várias vezes suspensa e objeto de adiamentos e ainda hoje prossegue. Um responsável governamental polaco confirmou à Amnistia Internacional que as autoridades dos Estados Unidos ignoraram uma série de pedidos que lhes foram feito para fornecerem informações para esta investigação.

  • Roménia: Ao fim de muitos anos de desmentidos, o ex-diretor dos serviços secretos romenos e antigo conselheiro de segurança nacional do então Presidente do país reconheceu que a agência que dirigia permitiu aos Estados Unidos manterem um ou dois centros de detenção na Roménia. Este antigo responsável relacionou esta cooperação com as pretensões de adesão da Roménia à NATO. O relatório da comissão do Senado norte-americano refere o chamado “Centro de Detenção Preto” na sua investigação, dando detalhes que coincidem com as informações conhecidas sobre um dos locais de detenções secretas da CIA na Roménia. Tem sido reportado que o país recebeu milhões de dólares dos Estados Unidos. As autoridades romenas dizem ter dado arranque a um inquérito e requisitaram aos Estados Unidos uma versão completa e sem quaisquer edições do relatório da Comissão de Serviços Secretos do Senado.

  • Lituânia: Depois da divulgação do sumário do relatório norte-americano, um deputado lituano, que já fora responsável por uma investigação às alegações de existência de uma prisão secreta no país, admitiu que a informação avançada na investigação do Senado dos Estados Unidos indica que houve pessoas detidas na Lituânia ao abrigo do programa da CIA. O relatório do Senado refere-se ao chamado “Centro de Detenção Violeta” e inclui detalhes – nomeadamente da detenção de um cidadão saudita naquele local – que é consistente com informações publicamente conhecida sobre um centro de detenção secreto da CIA na Lituânia. Um grupo de deputados lituanos apresentou uma moção no Parlamento para que seja criada uma nova comissão de inquérito ao envolvimento da Lituânia no programa de detenções secretas da CIA.

  • Reino Unido: O Reino Unido foi indiscutivelmente o mais importante aliado dos Estados Unidos nas operações globais de antiterrorismo da CIA. O relatório do Senado contém uma referência ao possível envolvimento britânico nas operações de detenções, transferências e interrogatórios: a da tortura de Binyam Mohamed, antigo detido na prisão militar americana na base naval de Guantánamo. Tem sido consistentemente reportado que o Reino Unido fez uma pressão desesperada para que aquele documento não contivesse quaisquer menções que envolvessem o país. O relatório do Senado não faz nenhuma referência a Diego Garcia – território britânico no Oceano Índico – ter ou não sido usado como local de transferências e/ou de detenções no contexto das capturas ao abrigo do programa da CIA. Mas a Amnistia Internacional já há muito tempo que insta as autoridades norte-americanas e britânicas à transparência no que toca ao eventual uso de Diego Garcia. O primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron, declarou que o país está a investigar as alegações de que agentes britânicos estiveram envolvidos em práticas de tortura e de maus-tratos de detidos de outras nacionalidades em território não britânico, frequentemente em conluio com os Estados Unidos – mas esta garantia soçobra ao ser analisada. Com efeito, a Amnistia Internacional e outras organizações de direitos humanos consideram que o inquérito que se encontra em curso na Comissão parlamentar britânica de Serviços Secretos e Segurança não é independente e ficará minado pelo facto de que o Governo goza de um poder absoluto para manter determinadas informações sob sigilo com o argumento dos interesses de segurança nacional.

  • Macedónia/Alemanha: O relatório do Senado norte-americano trouxe à luz mais informações sobre a submissão a tortura e o desaparecimento forçado do cidadão alemão Khaled el-Masri sob custódia de agentes dos Estados Unidos – caso que foi objeto de uma decisão do Tribunal Europeu de Direitos do Homem em 2012. O Governo da Macedónia não fez quaisquer comentários sobre o conteúdo do relatório norte-americano e até à data não cumpriu tão pouco a decisão emitida pelo Tribunal Europeu. Por seu lado, a Chancelaria alemã não investigou de forma cabal o seu papel nas operações da CIA, nem pediu aos Estados Unidos a extradição de 13 antigos operacionais da agência americana de serviços secretos que se crê que estiveram envolvidos na captura e transferência de El-Masri.

“Os Governos europeus envolvidos nas operações de antiterrorismo da CIA têm de levar a cabo urgentemente investigações abrangentes e eficazes, assim como proceder a reformas das suas leis, políticas e práticas que permitiram que estes atos ilegais e terríveis ocorressem”, insta a perita da Amnistia Internacional em antiterrorismo e direitos humanos. “Todos os que foram responsáveis pela tortura e desaparecimentos forçados nos territórios de países europeus têm de ser criminalmente acusados e levados a tribunal para julgamentos justos. E a justiça tem de ser obtida para todas as vítimas de tortura”, remata Julia Hall.

 

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