7 Abril 2015

 

Quem defende os direitos das mulheres no Afeganistão enfrenta enormes riscos de violência – ameaças, agressão sexual e até a morte –, enquanto o próprio Governo as vota ao abandono, apesar das conquistas que lutaram para alcançar, avalia a Amnistia Internacional em novo relatório.

Their Lives on the Line” (Com as vidas em risco) – divulgado esta terça-feira, 7 de abril – documenta como as defensoras dos direitos das mulheres e raparigas no Afeganistão, incluindo médicas, professoras, advogadas, polícias e jornalistas, assim como ativistas, se tornaram num alvo de violência, não apenas em ataques dos talibã mas também dos senhores da guerra no país, e até mesmo de responsáveis governamentais. As leis criadas para proteger estas pessoas são parcamente concretizadas, ou mesmo ignoradas por completo, enquanto a comunidade internacional pouco faz praticamente para atenuar esses riscos.

Ativistas dos direitos humanos foram vítimas de atentados com carros armadilhados, as suas casas visadas em ataques de granadas, familiares mortos e elas mesmo alvos de assassinatos. Muitas – e são as mulheres ativistas que mais são visadas – prosseguem o seu trabalho apesar de serem frequentemente atacadas, e fazem-no com a plena consciência de que nada será feito contra os seus atacantes.

“As defensoras de direitos humanos, de todas as camadas sociais, têm lutado corajosamente, e com ganhos significativos, ao longo dos últimos 14 anos. Muitas pagaram-no com a vida. É chocante que as autoridades afegãs as deixem abandonadas à sua própria sorte, numa situação mais perigosa agora do que nunca”, critica o secretário-geral da Amnistia Internacional, Salil Shetty, que participa em Cabul na conferência de imprensa de lançamento deste relatório.

Salil Shetty sublinha ainda que “com a retirada das tropas [estrangeiras] quase completa, muita gente na comunidade internacional parece feliz em varrer o Afeganistão para debaixo do tapete”. “Mas não podemos abandonar o país, nem quem põe a vida em risco pelos direitos humanos, incluindo os direitos das mulheres”, frisa.

Tem-se registado um importante investimento internacional para apoiar as mulheres afegãs, no que se incluem esforços para fortalecer os direitos das mulheres no país, mas muito disso é fragmentado, aos bocados, e medidas ad hoc. Além de que muito do financiamento alocado a estas reformas está a acabar.

As ameaças vêm de todos os lados

Os talibã são responsáveis pela maioria dos ataques contra as mulheres defensoras de direitos humanos. Porém, responsáveis governamentais e comandantes das forças de segurança locais, com poder em muitas regiões do país e que gozam do aval das autoridades, têm vindo a tornar-se cada vez mais uma parte do problema, envolvidos em numerosos incidentes de violência e ameaças contra as mulheres.

Uma ativista explicou à Amnistia Internacional: “As ameaças agora vêm de todos os lados e é difícil identificar quem são os inimigos. Podem ser familiares, agentes das forças de segurança, talibã, políticos”.

Com base em entrevistas a mais de 50 mulheres ativistas dos direitos humanos e seus familiares, realizadas por todo o Afeganistão, a Amnistia Internacional detetou um padrão consistente de conduta por parte das autoridades, que ignoram ou se recusam a tratar com seriedade as ameaças feitas contra as mulheres. Poucas investigações são feitas, e as acusações e condenações são ainda menos. Em muitos casos, as mulheres ativistas que denunciam incidentes de violência ou ataques ficam em ainda maior risco, enfrentando ostracização e ameaças pelo simples facto de terem apresentado queixa.

Acresce que, no Afeganistão, nenhuma mulher está segura no espaço público, e aquelas que são visadas com ameaças e violência podem ser ativistas de direitos humanos, políticas, advogadas, jornalistas, professoras. Até mesmo as mulheres que trabalham nas forças de segurança estão em risco, movimentando-se num ambiente onde prolifera a intimidação sexual e o bullying, que, quase sempre, ocorrem impunemente.

Shah Bibi é diretora do Departamento dos Assuntos das Mulheres na província de Laghman, no Leste do país, onde desenvolve trabalho para consolidar os direitos das mulheres apesar de várias ameaças que já recebeu e que a forçaram a mudar de residência.

“Todos os dias, ao sair de casa, penso que não vou voltar viva e os meus filhos vivem com medo, tal como eu, com a possibilidade de um ataque dos talibã contra mim”, conta à Amnistia Internacional.

As antecessoras de Shah Bibi – Najia Sediqi e Hanifa Safi – foram mortas uns seis meses uma após a outra, em 2012, em ataques que ocorreram em pleno dia, a primeira alvejada por homens armados e a segunda na explosão de um carro armadilhado.

Numa história que se repete, familiares daquelas mulheres relataram à Amnistia Internacional que as ameaças de morte que reportaram não receberam por parte das autoridades qualquer reação, apesar de ambas terem apresentado várias vezes pedidos de proteção. Ninguém foi acusado em nenhum dos atentados em que foram mortas.

Leis não passam de promessas no papel

Muito embora exista legislação para proteger as mulheres no Afeganistão – e muito graças à incansável campanha levada a cabo pelas ativistas dos direitos das mulheres –, as leis não são feitas cumprir com extrema frequência e permanecem meras promessas no papel.

A histórica Lei para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, aprovada em 2009, continua a ser posta em prática de forma desigual, de região para região, e conduziu a apenas um número limitado de condenações. A Amnistia Internacional apurou que a falta de vontade política por parte das autoridades do Afeganistão se tem traduzido numa falta de recursos e de apoio ao trabalho dos órgãos e das instituições governamentais e seus responsáveis que tutelam a proteção das mulheres.

Além disto, existe uma cultura de aceitação da violência contra as mulheres e as raparigas, como uma prática “normal” que faz parte da vida, e, também assim, limita a capacidade de mulheres e raparigas participarem livremente na vida pública.

A Amnistia Internacional faz vários apelos neste relatório. Primeiro, que a proteção de mulheres e raparigas, especialmente nas zonas rurais, é essencial; segundo, que não pode haver discriminação na forma como essa proteção é providenciada; terceiro, que têm de ser deduzidas acusações e os responsáveis por ataques devem ser julgados ao abrigo da legislação que já existe no Afeganistão. Acresce que a cultura de intimidação nas instituições públicas deve ser controlada, e as autoridades têm de inverter as condutas que conduzem a abusos.

“O Governo afegão faz de conta que não vê esta ameaça bem real que é enfrentada por quem defende os direitos humanos e das mulheres. Estas pessoas corajosas – muitas delas que estão simplesmente a fazer o seu trabalho – são os bastiões de defesa contra a opressão e a violência que fazem parte do dia-a-dia de milhões de mulheres em todo o Afeganistão. O Governo tem de assegurar que são protegidas, não ignoradas”, insta a investigadora da Amnistia Internacional perita em Afeganistão, Horia Mosadiq.

Muito embora vários países tenham injetado centenas de milhões de dólares em projetos de apoio aos direitos das mulheres desde 2001, esta abordagem não chegou suficientemente longe. Tais projetos têm vindo a centrar esforços sobretudo em ganhos de curto-prazo, e têm sido concretizados sem ouvir as próprias ativistas dos direitos das mulheres. Agora, com a retirada das tropas estrangeiras quase a chegar ao fim, até estas frágeis conquistas estão em risco.

A União Europeia, junto com adicionais missões diplomáticas, lançou recentemente um programa que irá providenciar, assim que estiver operacional, proteção de emergência e monitorização constante dos riscos que defensoras de direitos humanos enfrentam no Afeganistão. Mas esta estratégia ainda não foi testada, pelo que não se sabe quão bem-sucedida será assim que estiver a funcionar.

“O Afeganistão tem um futuro incerto pela frente e está agora no que pode ser considerado o momento mais crítico da sua história recente. Este não é o momento para os governos da comunidade internacional virarem as costas ao país”, sustenta o secretário-geral da Amnistia Internacional. “A comunidade internacional tem mesmo de intensificar o envolvimento com o país e o Governo afegão, por seu lado, não pode continuar a ignorar as suas obrigações de direitos humanos”, remata Salil Shetty.

 

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