7 Junho 2024

 

A FIFA (Federação Internacional de Futebol) deve assegurar, de forma rigorosa e transparente, que as candidaturas à organização dos Campeonatos do Mundo de futebol masculino de 2030 e 2034 salvaguardam plenamente os direitos humanos e rejeitar qualquer proposta que possa implicar o risco de ter, novamente, o maior evento desportivo do mundo manchado por abusos.

 

No relatório “Playing a Dangerous Game? Human Rights Risks Linked to the 2030 and 2034 FIFA World Cups”, a Amnistia Internacional avalia os riscos para os direitos humanos relacionados com as propostas em cima da mesa: uma candidatura conjunta de Marrocos, Espanha e Portugal para o Mundial de 2030 (com jogos adicionais na Argentina, Paraguai e Uruguai) e outra da Arábia Saudita para ser a anfitriã do Mundial de 2034.

As propostas pormenorizadas de candidatura, que integram estratégias em matéria de direitos humanos, deverão ser apresentadas à FIFA dentro de algumas semanas, para posterior avaliação. Por sua vez, espera-se que a Federação confirme a organização do evento em dezembro.

“Com apenas uma única candidatura para acolher cada edição do torneio e com grandes preocupações em matéria de direitos humanos à volta de ambas, há sérias dúvidas sobre a vontade da FIFA em cumprir as promessas e reformas que fez nos últimos anos, incluindo exercer o seu direito de rejeitar qualquer candidatura que não cumpra os requisitos em matéria de direitos humanos que ela estabeleceu”, ressalva Steve Cockburn, diretor dos Direitos Laborais e do Desporto da Amnistia Internacional.

“As questões de direitos humanos associadas à candidatura conjunta ao Campeonato do Mundo de 2030 são significativas e devem ser abordadas. No entanto, os riscos associados à candidatura da Arábia Saudita ao Campeonato do Mundo de 2034 – que afetam trabalhadores, adeptos e jornalistas – são de uma magnitude e gravidade completamente diferentes”, acrescenta Steve Cockburn.

“Os riscos associados à candidatura da Arábia Saudita ao Campeonato do Mundo de 2034 – que afetam trabalhadores, adeptos e jornalistas – são de uma magnitude e gravidade completamente diferentes”

Steve Cockburn

O diretor dos Direitos Laborais e do Desporto da Amnistia Internacional alerta ainda que as experiências anteriores mostram que “o Campeonato do Mundo pode ser uma fonte de dignidade ou de exploração, de inclusão ou de discriminação, de liberdade ou de repressão, o que faz com que a atribuição pela FIFA dos direitos de acolhimento dos torneios de 2030 e 2034 seja uma das decisões mais importantes alguma vez tomada por uma organização desportiva”.

A proteção dos direitos humanos é também uma questão central para Andrea Florence, diretora da Sports & Rights Alliance, uma coligação que conta com a participação da Amnistia Internacional e que faz campanha pelos direitos humanos no desporto.

“Antes de atribuir qualquer torneio, a FIFA tem de garantir acordos vinculativos em matéria de direitos humanos que protejam integralmente os trabalhadores, as comunidades locais, os jogadores e os adeptos, nomeadamente contra o abuso e a discriminação das minorias raciais e religiosas, das mulheres e das pessoas LGBTI”, sublinha Andrea Florence.

“A FIFA tem de garantir acordos vinculativos em matéria de direitos humanos que protejam integralmente os trabalhadores, as comunidades locais, os jogadores e os adeptos, nomeadamente contra o abuso e a discriminação das minorias raciais e religiosas, das mulheres e das pessoas LGBTI”

Andrea Florence

A FIFA tem insistido para que os candidatos consultem as organizações da sociedade civil, entre as quais os grupos de defesa dos direitos humanos, mas tal não aconteceu. Por outro lado, a Federação não respondeu aos pedidos da Amnistia Internacional para contactar os consultores envolvidos nas avaliações das propostas em termos de direitos humanos.

Na atribuição da maioria das edições anteriores do Campeonato do Mundo de futebol, a FIFA não assegurou de forma total a salvaguarda dos direitos humanos, o que facilitou a ocorrência de abusos. Na fase final do Mundial de 2022, no Qatar, os trabalhadores do torneio foram vítimas de violações de direitos humanos, que implicaram até ferimentos e mortes.

Este novo relatório tem como base a investigação da Amnistia Internacional e dos parceiros da Sports & Rights Alliance. Os sumários do relatório foram partilhados com a FIFA, associações nacionais de futebol e autoridades governamentais dos países candidatos. Todas as respostas recebidas estão incluídas ou serão disponibilizadas ao público.

 

Riscos da candidatura ao Mundial de futebol de 2030

A candidatura conjunta de Marrocos, Portugal e Espanha ao Campeonato do Mundo de 2030 – com três jogos a serem disputados na Argentina, no Paraguai e no Uruguai – acarreta riscos em matéria de direitos humanos, principalmente relacionados com os direitos laborais, a discriminação, a liberdade de expressão e de reunião, a atuação policial, a privacidade e a habitação.

Em Marrocos, será necessária construção significativa, como um novo estádio com capacidade para 115.000 pessoas. No entanto, a legislação planeada para reforçar a saúde e a segurança no local de trabalho ainda não foi aprovada e os desalojamentos forçados são uma preocupação. Nos três países anfitriões da candidatura, os trabalhadores migrantes correm o risco de exploração e outras violações de direitos humanos, como o tráfico. Os ferimentos no local de trabalho em Portugal e Espanha são mais elevados do que a média da União Europeia (UE). Na ampliação do estádio Camp Nou do FC Barcelona em 2023, os trabalhadores migrantes foram vítimas de abusos e de fraude salarial.

A grande afluência ao Campeonato do Mundo poderá agravar a já severa escassez de habitação a preços acessíveis em Portugal e Espanha, contribuindo para um aumento dos alugueres de curta duração, o que conduzirá a uma subida dos custos da habitação ou ao desalojamento dos atuais residentes.

O uso excessivo da força policial – com recorrência a balas de borracha – é também um risco reconhecido nos três países, quer em ambiente futebolístico quer noutros contextos. Em Portugal e Espanha, a atuação policial tem recebido numerosas queixas de adeptos nacionais e estrangeiros. O direito à privacidade também pode ser ameaçado através de spyware invasivo e vigilância biométrica, especialmente em Marrocos e Espanha.

Em Portugal e Espanha, a atuação policial tem recebido numerosas queixas de adeptos nacionais e estrangeiros

Uma avaliação independente da FIFA sobre a anterior candidatura de Marrocos – na altura para acolher o Mundial de 2026 – constatou que a criminalização de atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo era “particularmente problemática”. Além disso, existem outros aspetos da legislação marroquina que continuam a perpetuar o risco de discriminação com base no género contra as trabalhadoras e adeptas do torneio, como a criminalização das relações sexuais extraconjugais, que muitas vezes impede as mulheres de denunciarem incidentes de violência sexual.

Marrocos restringe a liberdade de expressão através da criminalização das críticas ao Islão, à monarquia, às instituições do Estado, às forças armadas e à integridade territorial do Estado. Os jornalistas e os defensores dos direitos humanos têm sido perseguidos, detidos de forma arbitrária, espancados e processados por criticarem o governo, especialmente no que diz respeito ao território disputado do Sara Ocidental.

A discriminação racial é um problema nos três países e tem envolvido atos racistas contra jogadores de futebol negros, nomeadamente, contra Vinicius Junior em Espanha, Moussa Marega em Portugal e Chancel Mbemba em Marrocos. Em Portugal, 60% das pessoas acreditam que existe racismo no futebol, de acordo com um inquérito realizado em 2020 a pessoas ligadas ao desporto.

Em Portugal, 60% das pessoas acreditam que existe racismo no futebol, de acordo com um inquérito realizado em 2020 a pessoas ligadas ao desporto

Prevê-se ainda que as emissões de gases com efeito de estufa geradas pelas viagens relacionadas com um torneio alargado a 48 equipas e que decorre em três continentes sejam consideráveis, apesar do compromisso assumido pela FIFA em matéria de alterações climáticas de reduzir as emissões de carbono para metade até 2030 e de atingir um nível “net-zero” até 2040.

 

Riscos da candidatura da Arábia Saudita ao Mundial de 2034

A Arábia Saudita tem um historial aterrador em matéria de direitos humanos e a sua candidatura acarreta múltiplos riscos. Nos últimos anos, o país gastou milhares de milhões de euros numa campanha de reabilitação da sua imagem, muito dependente do investimento em desportos – incluindo o futebol – para desviar a atenção do seu grave registo de abusos. Existe ainda um projeto do código penal que poderá consagrar na lei muitas das violações dos direitos humanos.

A organização do Mundial em 2034 exigiria um enorme programa de construção, aumentando os riscos relacionados com os desalojamentos forçados, que já ocorreram com projetos de construção existentes. Há relatos de utilização de força letal para desmantelar povoações no âmbito da The Line, parte do projeto de construção da cidade NEOM.

É previsível que sejam necessárias centenas de milhares de trabalhadores para a construção do torneio, a maioria dos quais serão provavelmente cidadãos estrangeiros que já constituem a maior parte da força de trabalho do setor privado e correm sérios riscos de abusos laborais. O sistema kafala, que estabelece uma ligação legal a partir do estatuto de imigrante de um trabalhador com um empregador ou patrocinador, deixa os trabalhadores com recursos limitados quando sujeitos a fraude salarial, violência ou outros abusos.

É previsível que sejam necessárias centenas de milhares de trabalhadores para a construção do torneio, a maioria dos quais serão provavelmente cidadãos estrangeiros que já constituem a maior parte da força de trabalho do setor privado e correm sérios riscos de abusos laborais

A discriminação está profundamente enraizada na legislação e nas práticas e pode afetar os adeptos, os trabalhadores, os jogadores e os jornalistas. As mulheres adeptas correm o risco de serem processadas de forma injusta e desproporcional, à luz de leis que criminalizam o sexo fora do casamento. Estas leis são frequentemente usadas para silenciar as vítimas de violência sexual e podem resultar na sua detenção por tempo indeterminado. O sistema de tutela masculina discrimina as mulheres e as raparigas.

Apesar da garantia do Conselho de Turismo saudita de que “todos são bem-vindos”, não existe proteção legal para as pessoas LGBTI. Os processos são regularmente instaurados ao abrigo de regulamentos pouco claros e demasiado abrangentes em matéria de ordem pública e moralidade, bem como da Lei Anti-Crime Cibernético.

Apesar da garantia do Conselho de Turismo saudita de que “todos são bem-vindos”, não existe proteção legal para as pessoas LGBTI

Qualquer prática pública de outra religião que não seja o Islão é proibida e a minoria muçulmana xiita enfrenta discriminação acrescida. Doze adeptos xiitas do Al Safa Football Club foram recentemente condenados a penas de prisão entre os seis meses e um ano, por terem recitado um cântico religioso folclórico durante um jogo.

A liberdade de expressão, de associação e de reunião pacífica é reduzida ou inexistente. Não são permitidas organizações independentes de defesa dos direitos humanos, partidos políticos ou sindicatos e têm sido efetuadas detenções generalizadas de jornalistas, defensores dos direitos humanos, ativistas políticos, escritores, clérigos e ativistas dos direitos das mulheres. Quase todos os defensores dos direitos humanos estão, atualmente, a ser julgados, a cumprir penas de prisão, proibidos de viajar ou exilados. A legislação antiterrorista, com uma definição vaga, tem sido usada para perseguir ativistas, aos quais são impostos penas de prisão até 45 anos e mesmo a pena de morte por insultos “diretos ou indiretos” ao Rei ou ao Príncipe Herdeiro.

Não existem meios de comunicação social independentes e os jornalistas que criticam o governo enfrentam repressão, censura e prisão. O jornalista Jamal Khashoggi foi assassinado na Turquia em 2018, num crime legitimado pelo Estado da Arábia Saudita.

As autoridades sauditas bloqueiam diversos websites e têm também reprimido a população nos meios digitais. Salma al-Shehab, uma estudante de doutoramento da Arábia Saudita na Universidade de Leeds, no Reino Unido, foi detida e condenada a 27 anos de prisão pela sua atividade no Twitter (agora denominado X). De forma idêntica, Manahel al-Otaibi, uma instrutora de fitness, foi sentenciada a 11 anos de prisão por tweets de apoio aos direitos das mulheres. As contas de pessoas com uma voz crítica foram pirateadas e o software de espionagem Pegasus foi utilizado para localizar os telefones de ativistas dos direitos das mulheres, dissidentes políticos, jornalistas e os seus familiares.

Os adeptos que viajam para o Campeonato do Mundo e os trabalhadores migrantes podem pensar que estão isentos da pena de morte, mas os cidadãos estrangeiros representaram 39% das pessoas executadas em território saudita entre 2010 e 2021, mesmo por infrações não-violentas, como acusações de tráfico de droga. A Amnistia Internacional registou a execução de 172 pessoas pela Arábia Saudita em 2023, de pelo menos 13 países diferentes, entre as quais estavam seis mulheres.

Os cidadãos estrangeiros representaram 39% das pessoas executadas em território saudita entre 2010 e 2021

A Amnistia Internacional está a fazer campanha e a apresentar petições para a libertação de ativistas e outras pessoas detidas por se manifestarem a favor da mudança.

 

Recomendações

A prevenção das violações dos direitos humanos relacionadas com o Campeonato do Mundo de Futebol da FIFA em 2030 exigirá medidas para reforçar os direitos laborais, combater a discriminação, proteger o direito à habitação e permitir a liberdade de expressão.

As reformas necessárias para evitar violações relacionadas com a candidatura da Arábia Saudita ao Campeonato do Mundo da FIFA de 2034 terão de ser mais rigorosas, e integrar alterações profundas às leis laborais para proteger os trabalhadores e libertar ativistas e defensores dos direitos humanos que tenham sido injustamente presos.

As principais recomendações do relatório consideram que, para cada candidatura, a FIFA deve efetuar avaliações de risco dos direitos humanos verdadeiramente independentes e garantir compromissos sólidos dos países anfitriões para evitar violações dos direitos humanos. Isto terá de ser acompanhado por sistemas rigorosos que monitorizem e façam cumprir a sua implementação, como mecanismos para apresentação de queixas e acesso a uma reparação efetiva.

A FIFA deve também assegurar uma participação significativa das organizações da sociedade civil, dos sindicatos, dos representantes dos adeptos, dos sindicatos de jogadores e dos grupos que enfrentam discriminação durante todo o processo de candidatura e preparação do torneio.

O relatório acrescenta que a FIFA não deve atribuir o Campeonato do Mundo de futebol a nenhuma candidatura que não garanta os direitos humanos – e rescindir qualquer acordo para acolher o torneio se os direitos humanos forem postos em causa ou violados.

 

Ação urgente da Amnistia Internacional Portugal

A secção portuguesa da Amnistia Internacional lançou uma ação urgente onde desafia qualquer pessoa a enviar um e-mail ao Presidente da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), Fernando Gomes. Neste e-mail, é pedido que a FPF tenha em conta as recomendações de direitos humanos da Amnistia Internacional a propósito da formalização de candidatura ao Mundial 2030.

A proposta de e-mail, com o título e conteúdo, foi já preparada pela Amnistia Internacional. Pode ser encontrada aqui e enviada para [email protected].

Recursos

Artigos Relacionados