16 Novembro 2016

Vítimas de crimes de guerra, de crimes contra a humanidade e de outras graves violações de direitos humanos merecem ter os seus casos julgados em tribunal, frisa a Amnistia Internacional, instando todos os países a trabalharem juntos para fortalecer, e não abandonarem, o Tribunal Penal Internacional (TPI). Num golpe brutal à justiça internacional, a Rússia anunciou esta quarta-feira, 16 de novembro, que não pretende ratificar o Estatuto de Roma, o tratado criador do TPI.

Este apelo é feito pela organização de direitos humanos quando decorre a 15ª Assembleia de Estados-parte do Estatuto de Roma – o tratado fundador do TPI –, entre 16 e 24 de novembro em Haia, na Holanda. Em outubro passado foram conhecidas as decisões de desvinculação do Burundi, África do Sul e Gâmbia.

“Em vez de escolherem abandonar o que é, em muitos casos, a única via para alcançar justiça para milhões de vítimas vulneráveis de crimes previstos na lei internacional, os Estados devem trabalhar de boa-fé com o Tribunal Penal Internacional. E têm de usar o seu poder coletivo para confrontar as práticas de dois pesos e duas medidas, os vergonhosos fracassos e a politização da justiça por parte do Conselho de Segurança das Nações Unidas”, aponta o diretor de Investigação e Advocacy da Amnistia Internacional para a região de África, Netsanet Belay.

O perito sublinha que “esta sessão da Assembleia não pode ser dominada pelas decisões políticas cínicas de abandono do TPI por um pequeno número de governos”. “Em vez disso, os que apoiam o tribunal têm de centrar os seus esforços em fortalecer o sistema”, avalia ainda.

Um golpe brutal para a justiça internacional

No dia de arranque da 15ª Assembleia do TPI, o Presidente russo, Vladimir Putin, declarou que a Rússia não pretende tornar-se Estado-parte do Estatuto de Roma, que o país assinou em 2000 mas que nunca chegou a ratificar – o que a Amnistia Internacional avalia como um duro golpe desferido contra a justiça internacional.

O Ministério russo dos Negócios Estrangeiros justificou aquela decisão, numa comunicação submetida ao TPI, com o argumento de que não considera o tribunal um “órgão judicial verdadeiramente independente e competente” e que o mesmo não cumpriu as suas promessas.

“Só muito dificilmente não se vê aqui uma tentativa por parte da Rússia em minar o progresso para se alcançar justiça internacional. Esta decisão foi aparentemente tomada à velocidade da luz, apenas algumas horas depois de a Procuradora do TPI [Fatou Bensouda] ter afirmado que a situação no território da Crimeia e em Sebastopol pode constituir conflito armado internacional entre a Rússia e a Ucrânia”, frisa o diretor da Amnistia Internacional na Rússia, Serguei Nikitin.

Este perito da organização de direitos humanos lembra que “a Rússia nunca demonstrou intenção genuína de ratificar o Estatuto de Roma e este anúncio agora revela-se como nada mais do que desprezo pelos objetivos do TPI – que são os de pôr fim à impunidade nos genocídios, nos crimes de guerra e nos crimes contra a humanidade – e é, assim, uma afronta para todas as vítimas destes crimes terríveis”.

A Amnistia Internacional tem criticado consistentemente os repetidos esforços da Rússia em bloquear a remissão do caso da Síria à Procuradora do TPI pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU). E tem também documentado vastamente possíveis crimes de guerra cometidos pelas forças russas no conflito na Síria.

“Como a Rússia ainda não tinha ratificado o Estatuto de Roma, este anúncio pouco muda na prática; mas a decisão é um alarmante indicador da clara falta de vontade da Rússia em cooperar com os sistemas de justiça internacional”, explica ainda Serguei Nikitin. “O argumento da Rússia de que o TPI “fracassou em concretizar as esperanças da comunidade internacional’ é totalmente cínico, face o facto de que é a ameaça de veto por parte da Rússia no Conselho de Segurança da ONU que, em repetidas ocasiões, impediu que fossem feitas remissões de casos para o TPI, incluindo o da Síria. O TPI está longe de ser perfeito, mas esta declaração da Rússia só pode ser interpretada como uma tentativa dissimulada da Rússia em esquivar-se à responsabilidade que tem em alguns dos falhanços [que o país aponta ao TPI]”, remata o diretor da Amnistia Internacional na Rússia.

Recomendações para fortalecer o TPI

Algumas das preocupações expressas por vários países sobre o enfoque quase exclusivo em África nas investigações e acusações feitas pelo TPI são legítimas, mas existem também indicadores de que a Procuradora do tribunal (na foto: Fatou Bensouda, Procuradora do TPI mandatada até 2021) está a tentar dar solução a este desequilíbrio e expandir o seu trabalho para outras regiões do mundo – tal exigirá o apoio e recursos da Assembleia de Estados-parte, em particular dos países do Sul global.

A forma como o Conselho de Segurança das Nações Unidas tenta politizar o trabalho do TPI, remetendo-lhe alguns casos mas não outros, constitui também um enorme problema.

Todos os 124 Estados-parte da Assembleia têm, assim, de trabalhar juntos para confrontar estas práticas de dois pesos e duas medidas. A Amnistia Internacional fez um conjunto de recomendações antecipadamente a esta 15ª sessão da Assembleia, que visam o fortalecimento do TPI e da sua capacidade em fazer justiça para as vítimas de violações de direitos humanos.

Entre essas recomendações aos Estados-parte do Estatuto de Roma estão:

  • que declarem claramente o seu apoio ao TPI e que a África do Sul, a Gâmbia e o Burundi reconsiderem a decisão de se retirarem do tribunal;

  • que exortem os membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas a se absterem de usar o seu poder de veto para bloquear remissões de casos ao procurador do TPI que envolvam crimes de guerra, crimes contra a humanidade ou genocídio;

  • que apoiem a aprovação de recursos suficientes para que o TPI possa expandir as suas investigações já em 2017;

  • que desenvolvam sistemas para garantir a cooperação dos governos com o TPI, especialmente no que se refere à detenção e entrega ao tribunal de suspeitos;

  • que assegurem que quaisquer reformas feitas ao enquadramento jurídico do TPI se norteiam e alcançam os mais elevados padrões de justiça para os arguidos, ao mesmo tempo que respeitam os direitos das vítimas e testemunhas.

Estas recomendações da Amnistia Internacional surgem numa altura em que o TPI está a enfrentar uma reação de abandono por parte de alguns países africanos – Burundi, África do Sul e Gâmbia estão a dar passos, desde outubro passado, para removerem a sua adesão ao tribunal.

Porém, muitos outros países que integram o Estatuto de Roma fizeram recentemente declarações de firme e continuado apoio ao TPI, incluindo o Botswana, a Serra Leoa, o Malawi, Nigéria, Costa do Marfim e Senegal. A Tanzânia, por seu lado, instou à necessidade de um diálogo construtivo em vez de ameaçar cortar a sua ligação ao TPI.

E muitos outros Estados-parte do Estatuto de Roma – como o Mali, a República Democrática do Congo e a República Centro Africana – continuam a cooperar com o TPI em relação a situações e processos em curso. Além disso, o Gabão muito recentemente remeteu ao TPI um caso de violações de direitos humanos no país.

Desde a sua adoção em 1998, 124 países integraram o Estatuto de Roma do TPI – 34 deles em África.

A Amnistia Internacional emitiu sete recomendações prioritárias à 15ª Assembleia de Estados-parte do TPI. A organização de direitos humanos mantém também uma campanha de pressão para que o Conselho de Segurança da ONU adote um código de conduta em que os seus membros permanentes concordem voluntariamente em abster-se do uso do veto para bloquear a ação do Conselho de Segurança em situações de genocídio, de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade.

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