19 Junho 2024

 

Em antecipação ao Dia Mundial do Refugiado, que se assinala a 20 de junho, a Amnistia Internacional publica um novo relatório onde apela a que as autoridades egípcias terminem com as detenções arbitrárias em massa e as deportações ilegais de refugiados sudaneses que atravessaram a fronteira para o Egito em busca de abrigo do conflito no Sudão.

 

O relatório “Handcuffed like dangerous criminals: Arbitrary detention and forced returns of Sudanese refugees in Egypt” (em português: “Algemados como verdadeiros criminosos: Detenção arbitrária e devoluções forçadas de refugiados sudaneses no Egipto”), revela como os refugiados sudaneses são reunidos e deportados ilegalmente para o Sudão – uma zona de conflito ativa – sem direito a um processo justo ou sem oportunidade de pedir asilo, o que viola o direito internacional. As provas recolhidas pela Amnistia Internacional indicam que milhares de refugiados sudaneses foram detidos de forma arbitrária e, em seguida, expulsos em grupo. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) estima que 3.000 pessoas foram deportadas do Egito para o Sudão só em setembro de 2023.

Sara Hashash, diretora regional adjunta para o Médio Oriente e Norte de África da Amnistia Internacional, reforça os apelos para o respeito dos direitos humanos destes refugiados:

“As autoridades egípcias necessitam de pôr termo a esta campanha de detenções em massa e de expulsões coletivas. Têm de cumprir as suas obrigações internacionais à luz do direito internacional dos direitos humanos e do direito dos refugiados, de modo a proporcionar às pessoas que fogem do conflito no Sudão uma passagem segura e digna para o Egito e um acesso aos procedimentos de asilo sem restrições”.

“As autoridades egípcias necessitam de pôr termo a esta campanha de detenções em massa e de expulsões coletivas”

Sarah Hashash

Durante décadas, o Egito acolheu milhões de sudaneses que estudavam, trabalhavam, investiam ou recebiam cuidados de saúde no país. As mulheres e raparigas sudanesas, assim como os rapazes com menos de 16 anos e os homens com mais de 49 anos, estão isentos dos requisitos de entrada. Estima-se que cerca de 500.000 refugiados sudaneses tenham fugido para o Egito após o início do conflito armado no Sudão em abril de 2023. No entanto, no mês seguinte, o governo egípcio introduziu uma obrigação de visto de entrada para todos os cidadãos sudaneses, conduzindo muitas pessoas à passagem irregular de fronteira por falta de outra opção.

O relatório documenta as dificuldades de 27 refugiados sudaneses detidos arbitrariamente com cerca de 260 outros refugiados entre outubro de 2023 e março de 2024. A sua detenção foi efetuada pelas Forças da Guarda Fronteiriça do Egito (FGFE), sob a tutela do Ministério da Defesa, e pela Polícia, que opera às ordens do Ministério do Interior.

Além disso, esta análise mostra como as autoridades submeteram 800 detidos sudaneses a retornos forçados entre janeiro e março de 2024, aos quais foi ainda negada a possibilidade de requerer asilo – nomeadamente através do acesso ao ACNUR – ou de contestar as decisões de deportação.

As autoridades submeteram 800 detidos sudaneses a retornos forçados entre janeiro e março de 2024, aos quais foi ainda negada a possibilidade de requerer asilo ou de contestar as decisões de deportação

Para este relatório, a Amnistia Internacional realizou entrevistas a refugiados detidos, aos seus familiares, a líderes comunitários, a advogados e a um profissional de saúde, tendo também examinado declarações, documentos oficiais e provas audiovisuais. Os ministérios egípcios da Defesa e do Interior não responderam às cartas da Amnistia Internacional que partilhavam a sua documentação e recomendações. Por outro lado, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos do Egito – aquela que é a instituição nacional dos direitos humanos – rejeitou as conclusões, alegando que as autoridades cumprem as suas obrigações internacionais.

O aumento das detenções e dos retornos forçados em massa deu-se após um decreto do primeiro-ministro, publicado em agosto de 2023, que exigia que os cidadãos estrangeiros no Egito regularizassem o seu estatuto. Esta medida foi acompanhada por um aumento dos sentimentos xenófobos e racistas: tanto na Internet como nos meios de comunicação social, e ainda em declarações de funcionários governamentais que criticaram o “fardo” económico de acolher “milhões” de refugiados.

Este crescimento ocorreu também no contexto de uma maior cooperação da União Europeia (UE) com o Egito nas vertentes de migração e controlo das fronteiras, apesar do sombrio historial do país em matéria de direitos humanos e dos abusos bem documentados contra migrantes e refugiados.

Em outubro de 2022, a UE e o Egito assinaram um acordo de cooperação de 80 milhões de euros, que incluía o reforço da capacidade das FGFE para travar a migração irregular e o tráfico de seres humanos através da fronteira do Egito. O acordo pretende aplicar “abordagens fundamentadas nos direitos, orientadas para a proteção e sensíveis ao género”. No entanto, o novo relatório da Amnistia Internacional documenta o envolvimento das FGFE em violações contra refugiados sudaneses.

Um novo conjunto de medidas de ajuda e investimento, que tem a migração como pilar fundamental, foi acordado em março de 2024 enquanto parte da recém-anunciada parceria estratégica e abrangente entre a UE e o Egito.

“A UE, ao cooperar com o Egito no domínio da migração sem garantir salvaguardas rigorosas em matéria de direitos humanos, arrisca-se a ser cúmplice das violações dos direitos humanos cometidas pelo Egito. A UE deve pressionar as autoridades egípcias a adotar medidas concretas para proteger os refugiados e os migrantes”, lembra Sara Hashash.

“A UE, ao cooperar com o Egito no domínio da migração sem garantir salvaguardas rigorosas em matéria de direitos humanos, arrisca-se a ser cúmplice das violações dos direitos humanos cometidas pelo Egito”

Sarah Hashash

“Além disso, a UE necessita de efetuar avaliações rigorosas dos riscos para os direitos humanos antes de implementar qualquer cooperação em matéria de migração. Devem ainda ser criados mecanismos de controlo independentes com critérios de referência claros em matéria de direitos humanos. A cooperação deve ser imediatamente interrompida ou suspensa se houver riscos ou relatos de abusos”, acrescenta Sara Hashash.

 

Detenções arbitrárias nas ruas e nos hospitais

As detenções ocorreram sobretudo no Grande Cairo (que engloba o Cairo e Gizé) e nas zonas fronteiriças da província de Assuão ou dentro da própria cidade de Assuão. No Cairo e em Gizé, a polícia efetuou detenções em massa e controlos de identidade que visavam indivíduos de raça negra, espalhando o medo na comunidade de refugiados e deixando muitas pessoas com medo de abandonar as suas casas.

Após a detenção pela polícia em Assuão, os refugiados sudaneses são transferidos para esquadras ou para o campo das Forças de Segurança Centrais, um local de detenção não-oficial na região de Shallal. Os detidos pelas FGFE na província de Assuão são mantidos em instalações de detenção improvisadas – por exemplo, armazéns no interior de uma instalação militar em Abu Simbel e um estábulo para cavalos noutra instalação militar perto de Nagaa Al Karur – antes de serem forçados a entrar em autocarros e carrinhas que os levarão até à fronteira sudanesa.

Nestes centros de detenção, as condições são cruéis e desumanas. Existe sobrelotação, falta de acesso a casas de banho e instalações sanitárias, alimentação insuficiente e de má qualidade, e negação de cuidados de saúde adequados.

Nos centros de detenção existe existe sobrelotação, falta de acesso a casas de banho e instalações sanitárias, alimentação insuficiente e de má qualidade, e negação de cuidados de saúde adequados

A Amnistia Internacional também registou a detenção de pelo menos 14 refugiados em hospitais públicos de Assuão, local onde recebiam tratamento para ferimentos graves sofridos durante acidentes rodoviários nas suas viagens do Sudão para o Egito. Contra o conselho médico e antes de terem recuperado totalmente, as autoridades transferiram-nos para a prisão, onde foram obrigados a dormir no chão após a cirurgia.

Amira, uma sudanesa de 32 anos que fugiu de Cartum com a mãe, estava a receber tratamento num hospital de Assuão na sequência de um acidente de viação ocorrido a 29 de outubro de 2023. Como resultado, acabou por ficar com fraturas no pescoço e nas costas. À Amnistia Internacional, Nora (familiar de Amira) partilhou que os médicos lhe disseram que ela precisaria de três meses de cuidados médicos. No entanto, 18 dias depois, a polícia transferiu-a para uma esquadra em Assuão, onde foi forçada a dormir no chão durante dez dias.

 

Instalações de detenção frias e infestadas de ratos

O Laboratório de Provas da Amnistia Internacional analisou fotografias e verificou vídeos de janeiro de 2024, que mostravam mulheres e crianças sentadas no chão sujo, no meio de lixo, num armazém controlado por guardas fronteiriços egípcios. Nas suas entrevistas à Amnistia internacional, as antigas detidas afirmaram que os armazéns estavam infestados de ratos e ninhos de pombos e que tinham de suportar noites frias sem roupas ou cobertores adequados. Pelo menos 11 crianças, algumas com menos de quatro anos, foram detidas com as mães nestes locais. No caso dos homens, as condições do armazém eram de sobrelotação, com mais de cem homens amontoados e acesso limitado a casas de banho, o que os obrigava a urinar em garrafas de plástico durante a noite.

Antigas mulheres detidas afirmaram que os armazéns estavam infestados de ratos e ninhos de pombos e que tinham de suportar noites frias sem roupas ou cobertores adequados

 

Grupo de mulheres e crianças sudanesas num centro de detenção na província de Assuão, no Egito, enquanto aguardam o seu regresso forçado ao Sudão, em janeiro de 2024. Créditos privados.

 

Israa, que sofre de asma, contou à Amnistia Internacional que os guardas ignoraram o seu pedido por um inalador, mesmo quando ela sugeriu ser ela a pagá-lo.

Após períodos de detenção, que variaram entre alguns dias e seis semanas, a polícia e as FGFE algemaram homens e conduziram todos os detidos para o posto fronteiriço de Qustul-Ashkeet e entregaram-nos às autoridades sudanesas, sem uma avaliação individualizada do risco de graves violações dos direitos humanos em caso de regresso. A nenhum deles foi dada a oportunidade de requerer asilo, mesmo quando tinham marcação de entrevistas com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), quando pediram para falar com o ACNUR ou quando pediram para não serem reenviados. Estes regressos forçados violam as obrigações internacionais do Egito em matéria de direitos humanos e de direito dos refugiados, incluindo o princípio do non-refoulement (não-repulsão).

A 26 de fevereiro de 2024, as FGFE expulsaram Ahmed, a sua mulher e o filho de dois anos, juntamente com um grupo de cerca de 200 detidos, depois de os terem mantido durante seis dias no complexo militar de Abu Simbel.

Desde o início do conflito no Sudão, as autoridades egípcias não forneceram estatísticas nem reconheceram a sua política de deportações.

 

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