8 Setembro 2015

 

Em território húngaro, o desespero dos refugiados é avassalador. A investigadora da Amnistia Internacional Barbora Cernušáková esteve em Bicske, cidade da Hungria, onde as autoridades fizeram parar um comboio cheio de refugiados após lhes fazerem crer que estavam rumo à Alemanha. Viu, descreve aqui, “a crueldade bater mais fundo”.

 

“O irmão olha para ele. Era paquistanês, na casa dos cinquenta anos, e jaz sem vida ao lado da linha férrea, a uns metros da estação de comboios de Bicske. Não se sabe ao certo como morreu, mas sabe-se que estava a tentar chegar a uma vida melhor na Europa.

Faziam parte ambos de um grupo maior que tentara fugir de um comboio que tinha sido mandado parar naquela estação ferroviária húngara. Muitos outros refugiados continuavam a recusar-se a sair do comboio por não quererem ser levados para os centros de receção húngaros.

Na estação principal de Keleti, em Budapeste, e em Bicske, vi bater ainda mais fundo o nível de crueldade no tratamento dos refugiados na Hungria. Depois de lhes ser barrada a entrada nos comboios ao longo de vários dias, na manhã de quinta-feira, 3 de setembro, a polícia inesperadamente levantou as barreiras em Keleti.

Centenas de pessoas apressaram-se a entrar num comboio decorado com figuras a abraçarem-se e a celebrarem, e com uma enorme bandeira alemã em destaque. Muitos, desesperados por saírem da Hungria ao fim de tantos dias retidos em condições precárias à volta da estação de comboios, acreditaram que aquele comboio os levaria para a Alemanha, de onde, por estes dias, chegam imagens de residentes a receberem calorosamente os refugiados que chegam àquele país. As carruagens encheram-se bem depressa e por volta das 11 horas da manhã o comboio partiu de Budapeste.

Mas em Bicske, a uns 30 quilómetros para lá de Budapeste, a viagem chegou a um fim repentino.

Um refugiado palestiniano que viajava desde a Síria e se encontrava naquele comboio, contou o que aconteceu: ‘O comboio parou. A polícia anunciou que tínhamos de desembarcar, senão usariam a força. Por isso, obedecemos, abrimos as portas das carruagens e começámos a caminhar para a plataforma. Havia autocarros do lado de fora da estação. A polícia gritava e vimos fumo. Decidi escapar-me, comecei a andar na outra direção e continuei ao longo dos carris, na esperança de que me dirigia para a Áustria. Mas estava era a andar rumo a Budapeste! Acabei por desistir e apanhei um táxi de volta a Keleti. Paguei 30 euros’.

O regresso a Keleti deve ter sido devastador, pois ele sabia bem aquilo que o esperava. Multidões são mantidas do lado de fora da estação principal de Budapeste dias a fio, semanas mesmo. As pessoas dormem no chão duro, apenas com a roupa que têm e alguns cobertores, ou abrigadas em tendas que são distribuídas por voluntários. As lojas de fast-food nas imediações da estação tornaram-se nos principais prestadores de instalações sanitárias. A informação sobre o que vai acontecer, assim como sobre as opções e direitos que as pessoas têm, é escassa.

O Governo da Hungria lava as mãos sobre o que se passa em Keleti e sobre toda a situação dos refugiados no país. Argumentam que de qualquer forma não é ali que os refugiados querem ficar. Percebo bem que os refugiados queiram partir da Hungria. Desde o momento em que atravessam a fronteira, a interação com as instituições húngaras é muito tensa. Os refugiados referem-se às estruturas situadas na zona fronteiriça como ‘prisões’ e ‘Guantánamo’, e descreveram-me o tratamento áspero que lhes é dado pelos polícias e falaram da falta de comida e de água e da recusa das autoridades em providenciarem acesso a instalações sanitárias.

Dina tem 46 anos e chegou à Hungria a 14 de agosto com o filho e a mulher deste que está grávida de sete meses. A polícia fronteiriça manteve-os detidos durante 16 horas sem lhes dar nenhuma comida nem água. Quando a encontrei na estação de Keleti, Dina já tinha comprado os bilhetes de comboio para a Alemanha. ‘Quero começar uma nova vida em paz… Eles tratam-nos como animais; pior do que animais”.

Após registarem os pedidos de asilo na zona da fronteira, os requerentes de asilo recebem papéis para assinarem que os atribuem à tutela de um centro de receção. A maior parte das pessoas com que falei decidiu não ir para esses centros. Perguntei-lhes porquê e ouvi as mesmas respostas uma e outra vez: porque aqueles sítios estão totalmente sobrelotados, porque tiveram más experiências nas instalações localizadas nas zonas fronteiriças, porque querem viver vidas normais.

Foi recusado pelas autoridades o acesso da equipa da Amnistia Internacional aos centros de receção, pelo que podemos apenas assumir que aqueles que lá estiveram dentro nos contam a verdade. O que é que o Governo da Hungria está a esconder?

O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, disse no Parlamento Europeu, a 3 de setembro, que ‘falar de um sistema de quotas [de refugiados] sem nenhum controlo de fronteiras é um convite para aqueles que gostariam de vir [para a Europa]. [Criar] a ideia de que seríamos capazes de aceitar todos seria um falhanço moral’.

Mas o facto é que a Hungria já está a falhar, e abissalmente. A cerca fronteiriça erguida às pressas, a falta de assistência às pessoas que se acumulam junto às estações e nos comboios, as desadequadas condições de receção e as recentes reformas legislativas têm todas a mesma causa de raiz: o desejo de manter do lado de lá novas chegadas à fronteira. Isto não são só falhanços morais. Estão também a gerar muitíssimas violações de direitos humanos.

As mais recentes de uma série de leis com mira posta nos refugiados, votadas a 4 de setembro, incluem penas de prisão por passagem ilegal de fronteira e sentenças duras por danos causados às vedações fronteiriças – para dar alguns exemplos de algumas das últimas iniciativas das autoridades húngaras.

Por muito terrível que a resposta da Hungria seja – e é – há culpa de sobra em volta. Para muitos, foram a guerra e a perseguição, em primeiro lugar, que os forçaram a abandonarem os seus países de origem. E ao chegarem à Europa, não deviam ter de embarcar numa outra jornada perigosa ou mesmo mortal.

Enquanto os líderes europeus não acordarem em mudanças significativas ao sistema de asilo da Europa, que se encontra em implosão, os refugiados vão continuar a ser indesejados e a estar sem nenhuma assistência na Hungria. Os seus sonhos descarrilaram e não têm acesso à proteção de que precisam – apenas conseguem entrar em comboios rumo a destinos desconhecidos.”

 

A Amnistia Internacional tem em curso, desde 20 de março de 2014, a campanha SOS Europa, as pessoas acima das fronteiras, iniciativa de pressão global para que a União Europeia mude as políticas de migração e asilo, no sentido de minorar os riscos de vida que refugiados e candidatos a asilo correm para chegar à Europa, e garantir que estas pessoas são tratadas com dignidade à chegada às fronteiras europeias. A esta campanha está aliada uma petição que conta já com quase 14.500 assinaturas em Portugal. Assine e partilhe!

 

Artigos Relacionados