17 Fevereiro 2015

 

Os muito limitados recursos nas operações da União Europeia de busca e salvamento marítimas contribuíram para o elevado número de mortos que resultaram do naufrágio que envolveu quatro barcos pneumáticos, com centenas de migrantes a bordo, e que enviaram um sinal de SOS sob uma forte tempestade na Mediterrâneo na semana passada, revela a Amnistia Internacional após uma missão de investigação a Lampedusa.

Depois daquela tragédia em que morreram mais de 300 pessoas, a equipa de investigadores da organização de direitos humanos levou a cabo entrevistas no terreno, em Roma e na ilha italiana de Lampedusa, a sobreviventes do naufrágio, a agentes da guarda costeira e a responsáveis das autoridades locais.

Quando o SOS foi emitido, a 8 de fevereiro, o navio principal usado na operação pan-Europeia de gestão das fronteiras – conhecida como operação Tritão – estava atracado a centenas de quilómetros de distância, em Malta, em manutenção. E os maiores barcos usados na agora defunta operação italiana de vigilância, busca e salvamento Mare Nostrum estavam também fora de serviço e atracados bem longe, na Sicília.

“A guarda costeira italiana respondeu de forma admirável e com uma coragem individual excecional à chamada de SOS, trabalhando horas a fio em condições marítimas incrivelmente perigosas. É impossível saber quantas vidas poderiam ter salvado com melhores recursos, mas o balanço de mortos seria muito provavelmente menor do que foi”, avalia o investigador da Amnistia Internacional Itália Matteo de Bellis, que participou na missão em Lampedusa.

“A não ser que seja devidamente preenchido o vazio deixado pela agora defunta operação de busca e salvamento Mare Nostrum, que salvava vidas, refugiados e migrantes vão continuar a morrer em elevado número no mar”, prossegue o perito.

O fluxo de refugiados e migrantes engrossou significativamente durante o último fim de semana, e vai continuar a aumentar conforme a Líbia imerge cada vez mais fundo na violência. A guarda costeira italiana confirmou que as autoridades italianas e navios mercantes no Mediterrâneo resgataram das águas mais de 2.800 pessoas que viajavam em pelo menos 18 barcos entre os dias 13 e 15 de fevereiro. Só a 15 de fevereiro, foram salvas 2.255 pessoas de cerca de uma dúzia de barcos.

E este cenário ocorre apenas uma semana depois das 300 mortes que se deram no Mediterrâneo, quando quatro pneumáticos faziam a viagem da Líbia para Itália e foram apanhados por uma violenta tempestade no mar. A Amnistia Internacional ouviu os relatos de alguns dos sobreviventes daquela tragédia.

A partida da Líbia

De acordo com os testemunhos prestados por sobreviventes, o total de 400 migrantes, na maioria homens jovens oriundos da África Ocidental, tentavam fazer a travessia do Mediterrâneo em quatro botes pneumáticos a partir da costa da Líbia quando foram apanhados por condições de mar extremamente adversas no domingo de 8 de fevereiro.

Contrabandistas que levam as pessoas nestas travessias tinham mantido aqueles migrantes perto de Trípoli à espera de puderem viajar depois de lhes terem cobrado um valor equivalente a cerca de 650 euros. Na noite de 7 de fevereiro, os contrabandistas armados levaram os migrantes até à cidade portuária líbia de Garabouli, a uns 40 quilómetros para oeste de Trípoli, e fizeram-nos subir a bordo de quatro botes pneumáticos.

Bem cedo na manhã seguinte, conforme os botes ficaram à deriva no Mar Mediterrâneo, nas águas a norte da Líbia, ficou claro que estavam em perigo muito grave.

Alerta de SOS

Responsáveis da guarda costeira italiana disseram à Amnistia Internacional que receberam uma chamada de ajuda por telefone satélite às primeiras horas da manhã de 8 de fevereiro, de uma localização a 120 milhas marítimas (cerca de 222 quilómetros) para sul de Lampedusa e 40 milhas marítimas (cerca de 74 quilómetros) para norte da Líbia. O SOS foi quase ininteligível, mas os agentes de serviço conseguiram perceber as palavras “perigoso, perigoso” ditas em inglês.

Agentes da guarda costeira frisaram que, nas circunstâncias que se verificavam, os migrantes que se encontravam no mar enfrentavam uma morte quase certa. A previsão meteorológica para aquela zona do Mediterrâneo era muito adversa para toda a semana. Os barcos em que os migrantes viajavam tinham apenas pequenos motores de popa e os contrabandistas não tinham fornecido combustível suficiente para toda a travessia.

Segundos testemunhos de sobreviventes, mais de 300 pessoas morreram no mar. Os migrantes, a maioria deles envergando roupas muito leves, estiveram expostos a condições atmosféricas extremas ao longo de dois dias, incluindo temperaturas próximas de zero graus, chuva e até granizo, e os seus barcos sacudidos por vagas que às vezes chegavam aos oito metros.

Os agentes da guarda costeira italiana que responderam ao SOS conseguiram resgatar 105 pessoas que estavam a bordo de um dos botes pneumáticos, por volta das 21h de domingo, mas 29 delas acabaram por morrer de hipotermia e outras causas já após o salvamento. Dois navios mercantes que se encontravam na zona acudiram a outros nove sobreviventes, que estavam em outros dois botes. Os migrantes salvos nesta tragédia contaram que eram quatro barcos pneumáticos que faziam aquela travessia em conjunto. Uma das embarcações continua desaparecida.

A maior parte daqueles que foram salvos nesta tragédia são oriundos da Costa do Marfim (41, incluindo duas crianças), seguindo-se cidadãos do Mali (23, incluindo uma criança), do Senegal (nove), da Guiné (sete), da Gâmbia (dois) e do Níger (dois). Segundo os dados coligidos pelas autoridades, são também da Costa do Marfim mais de metade dos mortos confirmados entre os que foram resgatados: 15 do total das 29 pessoas salvas que morreram depois do salvamento, aos quais se juntam sete mortos do Mali, cinco do Senegal e um da Guiné e um outro da Mauritânia.

A Amnistia Internacional entrevistou Ibrahim, um homem de 24 anos oriundo do Mali que foi um dos dois sobreviventes a bordo do bote em que viajava:

“[Por volta das 19h de] domingo, o bote começou a perder ar e a encher-se de água. As pessoas começaram a cair ao mar. A cada onda, dois ou três eram levados. A parte da frente do barco levantou-se no ar e as pessoas que estavam para trás caíram ao mar. Nessa altura, só umas 30 pessoas ainda estavam dentro do barco. Um dos lados manteve-se à tona e [agarrámos-nos a uma corda porque] tínhamos água até à barriga. E depois já éramos só quatro dentro do barco. Continuámos a agarrar-nos, juntos, toda a noite. Chovia muito. Quando o dia nasceu, outras duas pessoas foram arrastadas. De manhã vimos um helicóptero a sobrevoar-nos. Havia uma camisola vermelha nas águas e apanhei-a e sacudi-a no ar para que nos vissem. Eles atiraram um pequeno barco insuflável às águas, mas eu já não tinha forças para o alcançar. Por isso ficámos agarrados ao pneumático a afundar. Uma meia hora mais tarde chegou um cargueiro que nos lançou uma corda para que pudéssemos subir a bordo. Eram então umas três horas da tarde [de 9 de fevereiro].”

Lamin, também do Mali, e que seguia num dos outros botes pneumáticos que foram resgatados por um navio mercante, contou à Amnistia Internacional:

“Éramos 170 [a bordo]. No mar alto, as ondas faziam o barco ir para cima e para baixo. Estávamos todos cheios de medo. Vi três pessoas caírem à água. Ninguém as podia ajudar. Elas tentaram agarra-se ao barco mas não conseguiram. Depois muitos outros morreram, talvez por não haver água nem comida. Não consigo dizer quantos morreram. Quando chegou um navio mercante grande para nos salvar, já só éramos sete. Os marinheiros atiraram-nos uma corda e puxaram-nos a bordo. Durante o salvamento, o [nosso] bote dobrou-se ao meio e afundou, levando consigo os corpos dos mortos.”

A operação de salvamento

A guarda costeira italiana respondeu ao SOS a 8 de fevereiro, enviando duas aeronaves de busca e quatro barcos de patrulha – dois dos quais seguiram imediatamente, seguidos dos outros dois depois de um dos iniciais ter tido um problema de motor.

O responsável pelo centro de operações de resgate da guarda costeira italiana foi muito franco sobre os recursos limitados de que dispõem: “Consegue imaginar o que é fazer aquela distância num barco de 18 metros com ondas a chegarem aos oito e nove metros? Tememos pela vida da nossa tripulação… Quando as travessias são feitas depois do inverno começar, nós não conseguimos acudir a tudo se formos os únicos a fazê-lo”.

Necessidade urgente de ação

Os moradores de Lampedusa e as autoridades locais estão abalados após a mais recente de uma longa série de tragédias no mar que ocorrem junto à ilha.

A presidente da Câmara de Lampedusa, Giusi Nicolini, declarou à Amnistia Internacional: “Quando os mortos chegam, sentimo-nos derrotados. Perguntamo-nos por que razão nada muda, nunca. A Europa está totalmente ausente – e não é preciso ser um perito em política para perceber porquê”.

A Amnistia Internacional insta os países membros da União Europeia a providenciarem operações concertadas de busca e salvamento ao longo das rotas que são feitas pelos migrantes, e que essas operações tenham pelo menos o mesmo alcance e capacidades da Mare Nostrum. E que, entretanto, a Itália forneça recursos adicionais de emergência.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR, UNHCR no acrónimo em inglês) estima que o fluxo de migrantes a atravessarem o Mediterrâneo vai continuar em 2015. Cerca de 218.000 pessoas fizeram esta travessia em 2014, e os números em janeiro deste ano já mostram um aumento de 60% no total de migrantes a chegarem e que foram registados na Itália, em comparação com janeiro de 2014. No ano passado verificaram-se quase 3.500 mortes nestes fluxos, o que torna a travessia do Mediterrâneo na mais perigosa via marítima do mundo.

 

A Amnistia Internacional tem em curso desde 20 de março de 2014 a campanha “SOS Europa, as pessoas acima das fronteiras“, iniciativa de pressão a nível global para que a Europa mude as políticas de migração e asilo, no sentido de que migrantes, refugiados e candidatos a asilo sejam tratados com dignidade à chegada às fronteiras europeias. Aja connosco! Inste os líderes europeus a porem as pessoas acima das fronteiras, assine a petição.

 

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