21 Janeiro 2015

As mulheres e raparigas no Egito enfrentam um grau de violência perturbador, tanto na esfera da vida privada como em público, incluindo ataques sexuais por multidões e tortura sob custódia dos agentes do Estado, é detalhado pela Amnistia Internacional num novo relatório.

“Circles of hell: Domestic, public and state violence against women in Egypt” (Círculos do inferno: a violência doméstica, pública e do Estado contra as mulheres no Egito) – publicado esta quarta-feira, 21 de janeiro – documenta as muitas falhas persistentes na legislação egípcia assim como a entrincheirada impunidade que continuam a alimentar a cultura de violência sexual e de género no país, apesar de algumas mas insuficientes reformas feitas recentemente.

“A realidade que as raparigas e as mulheres vivem no Egito é a de uma ameaça sempre presente, sempre à espreita, de violência física e sexual em todas as dimensões da vida. Em casa, muitas são sujeitas a espancamentos brutais, a agressão e abusos por parte dos maridos e de outros familiares. Em público são alvo de uma incessante perseguição sexual e vivem em risco de serem atacadas por multidões, quando não acabam como presas da violência de agentes do Estado”, descreve a vice-diretora do Programa Médio Oriente e Norte de África da Amnistia Internacional, Hassiba Hadj Sahraoui.

As autoridades egípcias anunciaram nos meses recentes a tomada de algumas iniciativas simbólicas, incluindo a adoção de uma lei a criminalizar o assédio sexual. Porém, os compromissos assumidos publicamente pelo Presidente, Abdel Fattah al-Sisi, para resolver este problema ainda não se traduziram em nenhuma estratégia coesa e bem sustentada. O facto é que as autoridades no país continuam a recusar-se a reconhecer a verdadeira escala do flagelo e a esquivar-se a encetarem as reformas-chave necessárias para começar a resolver eficazmente a violência e os enraizados comportamentos discriminatórios contra as mulheres.

“Já há muitos anos que sucessivos Governos no Egito alardearam os direitos das mulheres como um exercício de relações públicas ou então lançaram mão do fenómeno da violência contra as mulheres para marcarem pontos políticos contra os seus opositores. As autoridades no poder culpam os opositores pela violência sexual endémica na sociedade egípcia e prometem mudanças, mas nunca cumprem essas promessas”, denuncia Hassiba Hadj Sahraoui.

A perita da organização de direitos humanos frisa ainda que “a violência e a discriminação afetam todas as mulheres, por todo o espetro político no país”. “Os gestos simbólicos e as promessas por cumprir não vão chegar. As autoridades egípcias têm de agarrar a oportunidade das próximas eleições legislativas, em março, para porem este assunto no topo da agenda política. Não pode haver mais ‘se’ nem ‘mas’ sobre pôr fim de uma vez aos abusos, e garantir que as mulheres participam em pleno na vida pública”, prossegue.

Mais de 99 por cento das raparigas e mulheres egípcias inquiridas numa sondagem publicada em 2013 pela UN Women (organismo das Nações Unidas para a igualdade de género e capacitação e ampliação de poderes das mulheres) reportou ter vivido alguma forma de assédio sexual.

Houve algumas condenações desde que foi aprovada no ano passado uma nova lei que criminaliza o assédio sexual, punível com o mínimo de um ano de prisão, mas a vasta maioria das mulheres continua à espera de justiça. Mesmo quando procuram ajuda, muitas veem-se ignoradas ou mesmo tratadas com desdém pela polícia e pelo sistema judicial.

A Amnistia Internacional insta as autoridades egípcias a porem em marcha a há já muito tempo prometida e adiada estratégia de combate à violência contra as mulheres. “As autoridades fizeram grandes promessas, mas na verdade concretizaram muito pouco da reforma de fundo e abrangente que é extremamente necessária”, avalia a vice-diretora do Programa Médio Oriente e Norte de África.

“As mulheres são uma parte fundamental na solução para os problemas que o Egito enfrenta. É chegada a altura das autoridades conceberem um plano que ponha fim aos longos anos de violência e discriminação”, insta.

Ataques sexuais por multidões

Os ataques sexuais em público, em especial no contexto das manifestações na Praça Tahrir, no Cairo, aumentaram drasticamente nos últimos anos. Ataques sexuais e violações têm sido cometidos repetidamente, com as mulheres a serem agarradas, apalpadas, despidas e forçadas a percorrer as ruas, espancadas com paus, apunhaladas e açoitadas com cintos por multidões violentas. As autoridades não têm mostrado a devida diligência para evitar estes ataques nem para proteger as mulheres da violência.

A legislação egípcia que criminaliza a violação e outros ataques de natureza sexual continua a ficar aquém dos padrões internacionais de direitos humanos. Apesar de os tribunais terem condenado a penas de prisão um pequeno número de homens em relação aos ataques perpetrados na Tahrir, muitas sobreviventes ainda aguardam por justiça.

Mulheres sob a custódia do Estado

Esta investigação da Amnistia Internacional documenta também o tratamento deplorável que é dado às mulheres ao serem detidas pela polícia e quando já se encontram sob custódia das forças de segurança. Muitas raparigas e mulheres relataram terem sido torturadas e sujeitas a outros maus-tratos quando detidas, incluindo sendo alvo de violência sexual.

Nas prisões, as mulheres são frequentemente submetidas a tortura e maus-tratos com total impunidade dos perpetradores. Uma presa reportou ter sido obrigada a deitar-se no chão, em frente de outras detidas, e vergastada nos pés. Até mulheres grávidas foram tratadas de forma degradante ou desumana, incluindo estarem algemadas durante o trabalho de parto.

“Apesar de a maior parte das atenções estarem viradas para a situação de alguns detidos masculinos proeminentes, há verdadeiras histórias de terror a decorrerem nas prisões egípcias sobre o tratamento desumano e cruel que tem sido suportado pelas mulheres. Todas as mulheres que estão sob custódia policial ou na prisão têm de ser protegidas de atos de violência, de tortura e de maus-tratos, incluindo violação e todo o tipo de punições físicas”, sustenta Hassiba Hadj Sahraoui.

Violência doméstica e as leis discriminatórias de divórcio

Quase metade das mulheres ouvidas num inquérito recentemente feito pelo Ministério da Saúde disseram ter vivido alguma experiência de violência doméstica. Sobreviventes entrevistadas pela Amnistia Internacional descreveram abusos físicos e psicológicos brutais, em que foram espancadas pelos maridos, açoitadas e queimadas; em alguns casos, foram enclausuradas em casa contra a sua vontade. Muitas disseram ainda que o sistema legal não as está a proteger.

Muitos destes problemas têm origem nos comportamentos e mentalidade preconceituosa na sociedade egípcia, que são exacerbados pela Lei de Estatuto Pessoal e outras provisões legais que colocam obstáculos intransponíveis às mulheres para provarem que os maridos as agrediram ou feriram de alguma forma.

A isto acresce que o apoio às sobreviventes de violência sexual ou de género é quase inexistente. As mulheres que decidem reportar as agressões a que são sujeitas acabam confrontadas com uma série de dificuldades, incluindo falta de interesse por parte das forças de segurança e da procuradoria, assim como leis criminais desadequadas, em que a violência doméstica e a violação dentro do casamento não estão explicitamente criminalizadas. Isto conduz a que as mulheres submetidas a violência doméstica sofram em silêncio.

As leis de divórcio, lprofundamente discriminatórias, também forçam frequentemente as mulheres a ficarem encurraladas em relacionamentos abusivos. Os homens podem declarar unilateralmente o divórcio das suas mulheres sem terem de apresentar qualquer argumentação, mas as mulheres têm de prescindir dos direitos financeiros e aceitar o chamado divórcio khol (a pedido da mulher), em que não há atribuição de responsabilidades, ou então estarem preparadas para uma longa e dispendiosa batalha nos tribunais para provarem que os maridos as “prejudicaram”.

“As medidas adotadas recentemente para proteger as mulheres são largamente apenas simbólicas. As autoridades egípcias têm de demonstrar que estas são mais do que mudanças cosméticas, pondo em marcha esforços sustentados para concretizar mudanças e alterar o comportamento prevalecente e profundamente enraizado na sociedade egípcia”, remata a vice-diretora do Programa Médio Oriente e Norte de África da Amnistia Internacional.

 

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