15 Maio 2024

 

Em solo chinês, os familiares dos estudantes chineses e de Hong Kong – que se encontram a estudar na Europa e na América do Norte – têm enfrentado retaliação pelo ativismo dos estudantes no estrangeiro. Nas suas cidades de acolhimento estudantil, estes alunos têm sido vítimas de assédio e vigilância.

 

Os estudantes chineses e de Hong Kong têm vivido sob receio de intimidação, assédio e vigilância no estrangeiro, já que as autoridades chinesas procuram impedi-los de se envolverem em questões políticas ou consideradas “sensíveis”. Num novo relatório, On my campus, I am afraid’ (em português: “Na minha universidade, tenho medo”), a Amnistia Internacional entrevistou 32 alunos que estudam em universidades de oito países – Bélgica, Canadá, França, Alemanha, Países Baixos, Suíça, Reino Unido e EUA. Destes, 12 etudantes são de Hong Kong. Os seus testemunhos descrevem como foram fotografados e perseguidos em protestos nas suas cidades de acolhimento. Muitos, referiram também que, na China, as suas famílias têm sido visadas e ameaçadas pelas autoridades devido ao seu ativismo no estrangeiro.

“Os testemunhos reunidos neste relatório evidenciam a forma como os governos chinês e de Hong Kong procuram silenciar os estudantes, mesmo quando estes se encontram a milhares de quilómetros de casa. O ataque das autoridades chinesas contra o ativismo de defesa dos direitos humanos está a ser feito nos corredores e nas salas de aula das muitas universidades que acolhem estes estudantes. O impacto da repressão transnacional da China é uma verdadeira ameaça à livre troca de ideias que está no cerne da liberdade académica. Os governos e as universidades têm de se empenhar mais para a contrariar”, sublinha Sarah Brooks, diretora da Amnistia Internacional para a China.

“O impacto da repressão transnacional da China é uma verdadeira ameaça à livre troca de ideias que está no cerne da liberdade académica”

Sarah Brooks

 

“Estão a ser observados”

Uma estudante, Rowan*, descreveu como, poucas horas depois de ter participado numa comemoração sobre o massacre na Praça de Tiananmen em 1989, que teve lugar na sua cidade de acolhimento universitário, teve notícias do seu pai na China, que tinha sido contactado por agentes de segurança chineses. Foi-lhe dito para “educar a sua filha, que está a estudar no estrangeiro, a não assistir a quaisquer eventos que possam prejudicar a reputação da China no mundo”.

Rowan não tinha partilhado o seu nome verdadeiro com ninguém envolvido nesta manifestação, nem publicado nada na Internet sobre o seu envolvimento, pelo que ficou chocada com a rapidez com que os funcionários chineses a identificaram como participante, localizaram o seu pai e o utilizaram para a avisar de que não deveria continuar a manifestar-se. Rowan disse ainda à Amnistia Internacional que a mensagem era clara: “Estás a ser vigiada e, apesar de estarmos do outro lado do planeta, ainda te conseguimos contactar”.

Foi-lhe dito para “educar a sua filha, que está a estudar no estrangeiro, a não assistir a quaisquer eventos que possam prejudicar a reputação da China no mundo”

 

Como se manifesta a “repressão transnacional”?

Nos últimos anos, muitos estudantes chineses estrangeiros têm participado em críticas públicas ao governo chinês, nomeadamente, em torno das manifestações do “Livro Branco” de 2022 na China continental, das manifestações pró-democracia de 2019 em Hong Kong e das comemorações anuais do massacre de Tiananmen de 1989 em Pequim. O relatório da Amnistia Internacional revela como estas ações chamaram a atenção das autoridades chinesas, o que conduziu, muitas vezes, a repercussões das mesmas. O relatório identifica este fenómeno como “repressão transnacional”: ações governamentais destinadas a silenciar, controlar ou dissuadir a dissidência e as críticas de cidadãos nacionais no estrangeiro, em violação dos seus direitos humanos.

“Repressão transnacional”: ações governamentais destinadas a silenciar, controlar ou dissuadir a dissidência e as críticas de cidadãos nacionais no estrangeiro, em violação dos seus direitos humanos

Quase um terço dos estudantes entrevistados afirmou que as autoridades chinesas tinham assediado as suas famílias para impedir que eles criticassem o governo chinês ou as suas políticas enquanto estudavam no estrangeiro. Entre as ameaças feitas aos seus familiares na China continental, estavam a apreensão dos seus passaportes, o despedimento dos seus empregos, o bloqueio de promoções salariais e benefícios de reforma, ou mesmo a limitação da sua liberdade física. Em pelo menos três casos, a polícia chinesa pressionou ou deu instruções aos pais para cortarem o apoio financeiro aos seus filhos, a fim de os coagir ao silêncio.

Vários estudantes partilharam à Amnistia Internacional que, no estrangeiro, acreditam estar a ser vigiados pelas autoridades chinesas ou pelos seus agentes. Quase metade dos entrevistados declarou ter sido fotografada ou filmada em eventos – como manifestações – por pessoas que desconfiam estar a agir em nome do Estado. Ainda que os estudantes não pudessem fornecer provas conclusivas da identidade desses indivíduos, a investigação da Amnistia Internacional documentou um padrão de observações quase idênticas em diversos locais e contextos, o que sustenta as afirmações dos estudantes.

Em pelo menos três casos, a polícia chinesa pressionou ou deu instruções aos pais para cortarem o apoio financeiro aos seus filhos

A capacidade das autoridades chinesas para monitorizar as atividades dos estudantes estrangeiros é também possibilitada pela extensa capacidade de censura e vigilância digital de Pequim por detrás da “Grande Firewall”, que obriga os estudantes a recorrerem a aplicações chinesas aprovadas pelo Estado para comunicarem com a sua família e amigos na China.

Mais de metade dos estudantes entrevistados pela Amnistia Internacional autocensurava regularmente as suas conversas e publicações em plataformas digitais, com receio de que as autoridades chinesas estivessem a controlar as suas atividades, mesmo em redes sociais não-chinesas como o X, o Facebook e o Instagram. Vários estudantes conseguiram apresentar provas concretas desta vigilância digital, como quando a polícia mostrou aos pais de um estudante transcrições das suas conversas online no WeChat com membros da família.

Cerca de um terço dos estudantes afirmaram ter sido alvos de censura nas redes sociais chinesas, como o WeChat, num grau semelhante ao da China continental, apesar de se encontrarem fora do país. Alguns tentaram registar contas em números de telefone estrangeiros, mas continuaram a ser vítimas de censura. A conta WeChat de um estudante foi temporariamente banida na sequência das suas publicações sobre um protesto contra o “Livro Branco” na Alemanha.

 

Clima de medo

Praticamente todos os estudantes entrevistados revelaram que, em certa medida, autocensuraram as suas interações sociais enquanto estiveram no estrangeiro, com receio de retaliação por parte das autoridades chinesas. A maioria descreveu a limitação da sua participação na sala de aula devido à ideia de que os seus comentários e opiniões poderiam ser comunicados às autoridades estatais chinesas. Um terço dos estudantes afirmou que estes riscos fizeram-nos alterar o foco e direção dos  seus estudos, ou até mesmo a desistir de carreiras académicas.

Os estudantes de Hong Kong referiram que as leis repressivas da cidade – como a Lei de Segurança Nacional e a recentemente promulgada lei do Artigo 23.º – agravaram os seus medos, já que estas leis podem ser utilizadas para visar pessoas em qualquer parte do mundo. Logan* disse à Amnistia que o seu receio de ser identificado pelas autoridades de Hong Kong comprometeu a progressão na carreira académica na área que escolheu: “Gostaria muito de publicar a minha tese… mas estou preocupado, por isso optei por não o fazer”.

“Gostaria muito de publicar a minha tese… mas estou preocupado, por isso optei por não o fazer”

Logan*, estudante de Hong Kong

Associado a este receio constante, mais de metade dos estudantes confessaram ter sofrido problemas de saúde mental, desde o stress e o trauma até à paranoia e à depressão. Num caso, o aluno teve mesmo de ser hospitalizado. A suspensão do contacto com familiares na China, para os proteger de repressões das autoridades chinesas, foi um dos métodos adotado por oito estudantes. No entanto, isto deixou-os ainda mais isolados e sozinhos.

Muitos destes alunos acabaram por sentir a necessidade de se distanciarem dos seus colegas chineses, com medo de que os seus comentários ou opiniões políticas pudessem ser denunciados às autoridades na China. Alguns estudantes explicaram que a existência de contactos de telefone oficiais do governo chinês e do governo de Hong Kong para denunciar outras pessoas contribuiu para este receio.

A suspensão do contacto com familiares na China, para os proteger de repressões das autoridades chinesas, foi um dos métodos adotado por oito estudantes

Quase metade dos entrevistados disse ter medo de regressar a casa e seis estudantes confirmaram que não viam outra opção senão pedir asilo político após os estudos, por acreditarem que serão perseguidos se regressarem à China. Vários entrevistados afirmaram que, além deles, também os funcionários universitários não-chineses se distanciavam de eventos de ativismo relacionados com a China. Um estudante referiu até que um investigador cortou relações com ele devido ao seu apoio às manifestações contra o “Livro Branco”, já que o investigador receava que a associação pudesse prejudicar o seu acesso a oportunidades de investigação na China.

 

Falta de preparação para apoiar os estudantes chineses

Estima-se que existam cerca de 900.000 estudantes chineses a estudar no estrangeiro e a Amnistia Internacional apela aos governos e às universidades anfitriãs para que se empenhem mais na proteção dos direitos daqueles que enfrentam repressão transnacional.

“Na sequência deste relatório, os governos anfitriões podem e devem tomar medidas concretas para contrariar o clima de medo descrito pelos estudantes, nomeadamente, através da educação das suas comunidades, da criação de mecanismos de denúncia de alegados atos de repressão transnacional e da intervenção quando ocorrem incidentes. Os oito países apresentados neste relatório, e os muitos outros que acolhem estudantes chineses e de Hong Kong, têm a obrigação de proteger os estudantes internacionais sob a sua jurisdição”, destaca Sarah Brooks.

“Os governos anfitriões podem e devem tomar medidas concretas […] através da educação das suas comunidades, da criação de mecanismos de denúncia de alegados atos de repressão transnacional e da intervenção quando ocorrem incidentes”

Sarah Brooks

No início de 2024, a Amnistia Internacional escreveu a 55 universidades de renome nos oito países de investigação para averiguar as suas disposições existentes para proteger os estes estudantes contra a repressão. A organização recebeu 24 respostas substantivas (20 da Europa e quatro da América do Norte). Embora algumas instituições tenham afetado recursos para o apoio aos direitos humanos dos estudantes em geral, a maior parte desses fundos não parecia capaz de resolver os problemas com que os estudantes se defrontam, como salientado na investigação da Amnistia Internacional.

“As universidades da Europa e da América do Norte desconhecem frequentemente a repressão transnacional e o consequente efeito inibidor que se verifica nos seus vários departamentos, encontrando-se mal equipadas para lidar com ela”, refere Sarah Brooks.

Entretanto, nas últimas semanas, a resposta repressiva de muitas universidades nos EUA às manifestações dos estudantes em defesa dos direitos dos palestinianos – com um padrão semelhante a surgir mais recentemente na Europa – sublinha que os administradores das universidades têm ainda muito a fazer para proteger os direitos dos estudantes à liberdade de expressão e de reunião pacífica.

“Apesar da responsabilidade das universidades e dos governos anfitriões de proteger os estudantes, as autoridades chinesas são efetivamente os principais orquestradores da repressão descrita no relatório. Apelamos às autoridades de Pequim e de Hong Kong que terminem com todas as práticas que constituem repressão transnacional e permitam que os estudantes estrangeiros se concentrem nos seus estudos sem temerem pela sua segurança.”

 

*Os nomes de todos os estudantes e respetivas universidades são anónimos para proteção dos participantes

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