16 Maio 2015

 

Entrevista a John Dalhuisen

A avassaladora crise mundial de migrantes e refugiados, sem paralelo desde a II Guerra Mundial, o drama das mortes na travessia do mar Mediterrâneo e as responsabilidades de solidariedade e de respeito pelos direitos humanos que cabem à Europa são analisadas pelo diretor da Amnistia Internacional para a Europa e Ásia Central, John Dalhuisen, que esteve em Portugal esta semana para participar em Lisboa na Assembleia Parlamentar da União para o Mediterrâneo.

 

 

 

A Amnistia Internacional defende que tem de haver uma abordagem holística à crise de migrantes e refugiados no Mediterrâneo. O que é que isso implica?

Há agora uma necessidade imediata de dar resposta à crise humana no centro do Mediterrâneo, em que a prioridade tem de ser reduzir tanto quanto possível o número daqueles que cada vez mais se afogam. Mas a realidade é que quantidade nenhuma de barcos [de busca e salvamento] irá reduzir a zero aqueles que morrem nesta rota. Por isso, a Europa tem de pensar de forma muito mais alargada sobre as maneiras como pode reduzir as pressões na rota do Mediterrâneo central: para evitar que as pessoas a tomem, em primeiro lugar, mas também sobre o que mais pode fazer para assumir a sua quota-parte justa na crise de refugiados atual, que chegou às mais altas proporções desde o fim da II Guerra Mundial, com mais de 50 milhões de pessoas deslocadas ou refugiadas no mundo inteiro.

Tem de se conseguir atingir esses objetivos, providenciando mais rotas seguras e legais para chegar à Europa, seja isso feito através dos mecanismos de reinstalação, da concessão de vistos humanitários ou de um maior recurso aos procedimentos de reunificação de famílias – mas isto ainda é só parte do que é necessário.

Olhando de forma mais ampla para os desafios das políticas de migração, é preciso distinguir entre a crise de mortes no mar [Mediterrâneo] e a crise de refugiados. O que não há de forma nenhuma na Europa é uma crise de migração. Não estamos a falar de números a uma escala que a União Europeia [UE] não consiga gerir. Isso não significa que uma política abrangente para as migrações não deva também ter em conta a forma como lidar – de maneira humana e em respeito pelos direitos humanos – com as questões do controlo dos fluxos irregulares de migrantes económicos. Mas são duas coisas distintas.

A primeira tem a ver com o facto de a Europa ter de fazer uma discussão muito mais honesta sobre as suas verdadeiras necessidades económicas no que se refere às migrações. Atualmente, as políticas existentes são de restrição do acesso legal de migrantes, que resultam na exploração daqueles que chegam irregularmente, o que não é justo nem humano.

É óbvio, simultaneamente, que os países têm o direito e interesse legítimo em controlarem as suas fronteiras, e parte disso pode e deve envolver uma cooperação com os países de origem ou de trânsito de migrantes e refugiados no que toca a fazer regressar aqueles que não têm direito a aceder ao território europeu. Garantir a existência de mecanismos justos e eficazes de regresso é uma parte importante na preservação da integridade do sistema de asilo – e as organizações de direitos humanos devem sentir-se confortáveis em dizê-lo.

 

Uma das soluções que tem sido avançada para lidar com a crise de refugiados é o plano de quotas proposto pela Comissão Europeia. Este sistema pode funcionar?

Na verdade há dois planos diferentes, e ambos envolvem um elemento de quotas. O primeiro é na essência um sistema de realocação dos migrantes que chegam às costas da Europa, e isso não é mais do que um redesenhar do Regulamento de Dublim. Isto reporta aos sistemas internos de procedimentos dos próprios países e provavelmente faria todo o sentido, mas cabe apenas aos Estados decidirem como o fazerem entre si.

O segundo, porém, já é um programa de reinstalação de migrantes e refugiados administrado de forma centralizada pela União Europeia, que determinaria centralmente as necessidades de reinstalação existentes, das pessoas que estão na vasta maioria em campos de refugiados atualmente, e a forma como seriam acolhidas na Europa. É uma ideia interessante e sensata; ao mesmo tempo modesta e incrivelmente radical.

No que toca à escala da crise de refugiados, aquilo que a Comissão Europeia propõe é muito reduzido: 20.000 ou mesmo 30.000 vagas é um número extremamente pequeno face à população global de refugiados. É até pequeno em comparação apenas com a população de refugiados sírios. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados estima que é necessário reinstalar 360.000 refugiados até ao final de 2016. E a Amnistia Internacional avalia que a parte que cabe à Europa neste esforço global seria de 100.000 pessoas. Por isso, à luz das verdadeiras necessidades, a proposta da Comissão Europeia é muito modesta.

Mas a forma como muda o sistema europeu para as migrações, nisso é extremamente radical, uma vez que acaba com a ideia de que os Estados-membros da UE têm controlo soberano sobre a entrada de não-europeus nos seus territórios nacionais. Esta mudança é radical – o que, de resto, foi claramente demonstrado com a forma veemente como o Reino Unido já se opôs. E seguramente que não serão os únicos, o que poderá fazer com que a proposta da Comissão Europeia falhe.

Para a Amnistia Internacional a questão prende-se muito mais com a escala e a ambição dos programas de reinstalação do que com os veículos políticos com que a reinstalação é feita. Se o que daqui resultar for um mecanismo europeu de reinstalação para 20.000 pessoas e em que os Estados-membros param de fazer os seus esforços nacionais de acolhimento, acabamos com um resultado zero. Por isso é que dizemos que estas propostas não trazem melhoras significativas, são apenas pequenos passos.

 

Os líderes europeus estão também a tentar obter nas Nações Unidas base legal para uma operação militar na Líbia com o propósito de destruir em terra os barcos dos traficantes de pessoas. Quais podem ser as consequências desta linha de ação?

A primeira questão que aqui se coloca é: para que é que essa intervenção vai servir? Pode ser argumentado que não é da área de competência nem de perícia da Amnistia Internacional pronunciar-se se uma operação militar para repor a ordem e o respeito pelos direitos humanos na Líbia é justificável. Mas o problema é que não parece ser isso que está a motivar a criação de uma missão militar: se o que se ouve de alguns governos europeus é que é precisa ação militar para impedir os migrantes de chegarem aos seus territórios, já estamos a falar de algo muito diferente da reposição de paz e respeito pelos direitos humanos – e não vejo como poderá ser justificada uma intervenção militar que na essência funcionará como uma operação de policiamento de fronteiras.

É claro que há muito trabalhoque é  necessário para resolver os problemas das redes de tráfico humano, só que isso não pode ser feito à custa de se encurralar as pessoas na Líbia, onde é garantido que vão sofrer abusos de direitos humanos a um nível muito significativo. O desafio aqui é o de pôr em marcha medidas que não impeçam as pessoas de partir da Líbia, antes que reduzam o número de pessoas que entram na Líbia. Porque os perigos que os migrantes e refugiados enfrentam não começam nas costas líbias, quando embarcam para atravessar o Mediterrâneo, mas sim muito, muito antes.

Por isso é extremamente difícil de perceber que uma eventual operação militar/de policiamento que encurrale migrantes e refugiados na Líbia seja benéfica para mais alguém do que para os governos europeus que querem reduzir o número de pessoas que estão a tentar entrar nos seus territórios.

 

A Amnistia Internacional tem em curso, desde 20 de março de 2014, a campanha “SOS Europa, as pessoas acima das fronteiras“, iniciativa de pressão global para que a União Europeia mude as políticas de migração e asilo, no sentido de minorar os riscos de vida que migrantes, refugiados e candidatos a asilo correm para chegar à Europa, e garantir que estas pessoas são tratadas com dignidade à chegada às fronteiras europeias. A esta campanha está aliada uma petição que conta já com mais de 8.000 assinaturas em Portugal.

 

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