25 Novembro 2015

Lacunas na legislação da Tunísia estão a permitir a agressores sexuais, violadores e a perpetradores de violência física escaparem-se à justiça enquanto as vítimas destes atos são frequentemente punidas e culpadas quando denunciam os crimes cometidos, revela a Amnistia Internacional em novo relatório.

“Assaulted and accused: Sexual and gender-based violence in Tunisia” (Agredidas e acusadas: a violência sexual e de género na Tunísia), publicado esta quarta-feira, 25 de novembro, Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, expõe como, após terem passado quase cinco anos desde a revolta naquele país – tido como estando na vanguarda da igualdade de género no mundo árabe –, continuam a persistir falhas graves na proteção devida às mulheres que sofrem violência e a quem é visado com agressões devido à sua identidade de género, orientação ou atividade sexual. Tal decorre, segundo a organização de direitos humanos, de leis deficientes e de atitudes discriminatórias profundamente entrincheiradas.

O vice-diretor da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África, Said Boumedouha, frisa que “este relatório revela a forma como a noção de crime e castigo está friamente subvertida na Tunísia”. “Uma combinação de leis arcaicas, de um policiamento ineficiente e de arraigados estereótipos de género torna muito difícil para as mulheres obterem justiça pelos crimes que são cometidos contra elas e, às vezes, conduzem a que elas sejam julgadas como criminosas”, prossegue o perito da organização de direitos humanos.

“No mundo árabe, a Tunísia tem liderado o caminho para quebrar tabus e fazer avançar os direitos das mulheres. Mas apesar das reformas positivas feitas ao longo dos anos, atualmente, raptores e violadores de raparigas adolescentes ainda conseguem sair impunes dos crimes se casarem com as vítimas. E as mulheres que apresentam queixa de violação dentro do casamento ou de violência no seio da família são pressionadas a retirarem essas queixas. Homossexuais e lésbicas que denunciam abusos muito mais provavelmente são acusados do que os seus atacantes. Em alguns casos, os polícias são até os perpetradores desses abusos”, explica ainda Said Boumedouha.

“É perturbador que além de sofrerem abusos horríveis, sobreviventes deste tipo de violência – incluindo mulheres e crianças – ainda enfrentem obstáculos enormes para obterem justiça e sejam efetivamente abandonadas pelas autoridades”, critica o vice-diretor da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África.

O novo relatório da Amnistia Internacional contém os resultados de entrevistas com dezenas de pessoas que sofreram ataques psicológicos e sexuais, violação, violência às mãos de familiares e assédio sexual, incluindo mulheres e raparigas assim como membros de grupos especialmente vulneráveis a abusos na Tunísia, como é o caso de quem pertence à comunidade lésbica, gay, bissexual, transgénero e intersexual (LGBTI) – visados devido à sua orientação sexual ou identidade de género – assim como de trabalhadores do sexo. Todas estas pessoas enfrentam barreiras legais ou sociais quando denunciam os ataques cometidos contra elas, e o apoio médico e social que recebem é inadequado.

Histórias angustiantes de abusos

As mulheres e raparigas na Tunísia vivem numa sociedade que dá prioridade à preservação da “honra” da família em prejuízo de levar os atacantes perante a justiça. As mulheres – e, em particular, as que sofreram ataques sexuais ou abusos na família – são desencorajadas de apresentarem queixas às autoridades, sendo-lhes feito sentir que estarão a trazer “vergonha” às suas famílias.

A polícia ignora frequentemente quem apresenta queixa, ou culpa-as, e, em alguns casos, atua como mediador entre a vítima e o atacante, até mesmo nas mais graves denúncias de violência.

Estas condutas sociais a par das falhas por parte do Estado são especialmente prejudiciais num país onde a violência sexual e de género continua a ser prevalecente. Quase metade das mulheres no país (47%) já sofreu alguma forma de violência, de acordo com o único estudo nacional realizado na Tunísia sobre violência contra as mulheres, em 2010. Poucos são os sinais de que a situação tenha desde então melhorado.

Muitas mulheres tunisinas veem-se encurraladas num ciclo de violência – incluindo a violação – frequentemente às mãos dos maridos. A Amnistia Internacional entrevistou mulheres que descreveram ter sido esbofeteadas, pontapeadas e espancadas, incluindo com cintos, paus e outros objetos, ou ameaçadas com facas, estranguladas e queimadas.

“O meu marido batia-me todos os dias. Quando apresentei queixa contra ele, em 2009, depois de me ter partido o nariz e cortado a cara, a polícia culpou-me a mim”, relatou uma mulher que continua a ser vítima de abusos. De novo em 2014, apresentou outra queixa contra o marido, mas em vez de o deter, a polícia obrigou-o a assinar uma declaração escrita em que prometia nunca mais repetir aqueles abusos. Porém, continua a bater na mulher sem enfrentar consequências.

Outras mulheres contaram aos investigadores da Amnistia Internacional terem sido repetidamente violadas pelos maridos, incluindo uma que sofreu violação anal: “A primeira vez que tivemos sexo senti estar a ser violada. Ele forçou-se em mim e causou-me cortes que infetaram… Durante alguns dias, após aquela primeira noite, não voltámos a dormir juntos. Depois ele disse-me ‘és minha mulher e tenho o direito de fazer o que eu quiser’”.

Uma mulher relatou ter sido violada aos 17 anos por um homem que conhecera depois de ter fugido de casa para se escapar a violência doméstica. Ficou grávida e sentiu-se pressionada a casar com o violador para evitar a vergonha de ser mãe solteira. Entretanto divorciou-se, mas, devido à lei tunisina que permite que os violadores de mulheres menores de 20 anos não sejam acusados nem julgados se casarem com elas, o ex-marido não pode ser levado à justiça pelo crime que cometeu.

O relatório Assaulted and accused” alerta que as leis sobre a violação na Tunísia contêm falhas graves e dissuadem as vítimas de apresentarem queixa dos abusos sofridos. Na prática, a legislação sobre violação no país põe enfoque indevido no uso da força ou de violência, tornando muito difícil que as mulheres consigam provar a violação sem provas médicas significativas, em que se incluem sinais de danos físicos.

Vítimas têm quase tanto medo da polícia como dos atacantes

Membros da comunidade LGBTI que sobrevivem a violência física ou sexual na Tunísia têm pela frente riscos ainda maiores de serem ignorados pela polícia ou serem acusados eles mesmos, em resultado da homofobia e transfobia generalizada no país, além da criminalização existente sobre as relações sexuais consensuais entre pessoas do mesmo sexo.

Sharky, uma lésbica de 25 anos, foi alvo de pelo menos oito ataques homofóbicos durante nove anos, incluindo ser esfaqueada e brutalmente espancada. Quando apresentou queixa de um desses ataques, os polícias avisaram-na de que podia ser condenada a uma pena de três anos de prisão por ser lésbica.

A Amnistia Internacional ouviu também pessoas transgénero que foram acusadas por ofensa “à moral pública” devido à sua aparência. As leis sobre “indecência” na Tunísia também podem ser usadas para punir sobreviventes de violência sexual. Em setembro de 2012, uma mulher conhecida como Meriam Ben Mohamed foi acusada de “indecência” depois de ter apresentado queixa contra dois polícias de a terem violado.

Trabalhadores sexuais na Tunísia são igualmente um grupo particularmente vulnerável a abusos como a exploração sexual, chantagem e extorsão, e frequentemente por parte da polícia. A criminalização do trabalho sexual no país traduz-se amiúde em estas pessoas terem demasiado medo para denunciarem os abusos sofridos, temendo que acabem por ser acusadas e condenadas elas próprias.

Uma mulher reportou aos investigadores da Amnistia Internacional que sofreu repetidos abusos sexuais e foi explorada por um polícia ao longo de dois anos depois de este ter descoberto que ela era trabalhadora do sexo. Uma outra mulher contou ter sido sexualmente assediada quando foi detida: “O polícia que me prendeu chamou-me ‘puta’ e disse-me que eu não tinha direito nenhum a defender-me. Os polícias apalparam-me os seios. Eles pensam que podem fazer tudo e que nós não somos ninguém porque somos trabalhadoras do sexo”.

A criminalização do adultério com uma pena de cinco anos de prisão constitui outro fator dissuasor para as mulheres se fazerem ouvir contra os abusos sexuais. A Amnistia Internacional recolheu testemunhos nesta investigação dando conta que mulheres foram ameaçadas com acusações criminais por adultério quando apresentaram queixa de terem sofrido ataques sexuais.

Mudar a maré da violência

A Constituição tunisina, de 2014, constituiu um enorme avanço na salvaguarda dos direitos humanos e nas conquistas obtidas pelo movimento dos direitos das mulheres ao longo dos anos naquele país. A nova Constituição assegura maior proteção às mulheres e consagra a igualdade de género e a não-discriminação; inclui outras garantias importantes que protegem os direitos da comunidade LGBTI; garante o direito à vida privada e à liberdade de expressão, de pensamento e de opinião.

Mas os trabalhos para redigir uma proposta-de-lei que combata especificamente a violência contra as mulheres e raparigas, em que é contemplada também a descriminalização das relações entre pessoas do mesmo sexo, ficaram recentemente em suspenso.

A Amnistia Internacional exorta a Tunísia a avançar com reformas corajosas para pôr fim à discriminação e à violência generalizadas que continuam a arruinar vidas no país, no que se inclui:

  • garantir acesso aos serviços de saúde e à justiça a sobreviventes de violência sexual e de género, sem preconceitos sociais e legais,

  • aprovar uma lei abrangente para dar resposta à violência contra mulheres e raparigas em consonância com as obrigações internacionais de direitos humanos da Tunísia,

  • rever as leis prejudiciais, em particular: reconhecendo na lei a violação dentro do casamento, pondo fim à possibilidade de violadores e raptores poderem escapar-se à justiça casando com as vítimas adolescentes, e acabando com a criminalização das relações sexuais consensuais entre adultos fora do matrimónio assim como das relações entre pessoas do mesmo sexo.

“A Tunísia tem o dever de proteger os direitos das pessoas que foram violadas e alvo de abusos horríveis, em vez de as sujeitar a serem culpadas e envergonhadas. As autoridades têm de enviar um sinal muito claro de que a violência sexual e de género não continuará a ser varrida para debaixo do tapete. E só mesmo através de reformas corajosas, que desafiem as existentes normas sociais e de género no país, será possível que a Tunísia elimine verdadeiramente a desigualdade de género e proteja as pessoas tomadas como alvo devido ao seu género ou à sua identidade sexual”, sustenta o vice-diretor da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África.

Said Boumedouha frisa que “as autoridades têm também de lançar investigações independentes e imparciais a todas as formas de violência sexual ou de género e providenciar que são prestados cuidados e serviços de apoio aos sobreviventes”.

Este relatório “Assaulted and accused” integra a campanha global da Amnistia Internacional O Meu Corpo, os Meus Direitos, que visa pôr fim ao controlo e criminalização dos direitos sexuais e reprodutivos por parte dos governos.

 

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