“A escola tem que ser um lugar onde os ciganos sintam que pertencem”
Nunca houve tantos alunos ciganos nas escolas portuguesas. No ano letivo de 2018/2019, havia 25 mil no ensino público, quase o triplo do que em 1997/98. E os seus percursos são cada vez mais longos, mostra o Perfil Escolar das Comunidades Ciganas, um estudo da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, publicado em julho. Mas a frequência escolar vai diminuindo à medida que as crianças se aproximam da adolescência. São muito poucos os que chegam ao secundário: no ano passado, foram apenas 651.
Sónia Matos, mulher portuguesa cigana, é mediadora sociocultural, fundadora e membro da direção da Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas (AMUCIP), sediada no Seixal. Há 20 anos que trabalha para prolongar os percursos escolares das comunidades ciganas. Antiga auxiliar de ação educativa numa escola básica, acompanha vários grupos de mulheres na sua formação e empoderamento, enquanto conclui a licenciatura em Educação Social.
Conta numa reportagem uma frase que o seu pai lhe disse a caminho da escola: “Só tenho pena que sejas uma mulher, se fosses um homem tudo seria mais fácil.” Como foi a escola para si?
A escola para mim foi como para todas as meninas ciganas, andei até à 4.ª classe. Aprendemos a ler e escrever para nos desenrascarmos. E depois passamos para a “universidade cigana”, com o currículo que nos é exigido: aprender a lidar com uma casa. Aos 13 anos, quando a minha mãe chegava da praça, os meus dois irmãos já estavam almoçados e a casa arrumada.
Quanto tens dez anos e te dizem “Acabou a escola”, é uma alegria. Nem nos apercebemos do que nos estava a ser vedado naquele momento.
Embora os níveis de abandono escolar sejam transversais, as raparigas ciganas continuam a sair mais cedo da escola. Tradicionalmente, têm que ser preservadas, protegidas, acompanhadas. Como é que se resolve esta tensão entre a obrigação de ir à escola e a ideia da preservação da honra e da cultura cigana?
É a batalha destes 20 anos. É muito difícil ainda para os pais ciganos permitir que as filhas tenham continuidade nos estudos, porque isso implica que elas percam casamentos. O casamento é o futuro na comunidade cigana. O procriar, criar família, é o objetivo fundamental.
Comparo muito a minha cultura com a portuguesa de há 50 anos. Nós evoluímos mais devagar, começamos mais tarde, quando nos permitiram a sedentarização.
Mas noto uma grande diferença: há muito mais meninas a fazer o 6.º, o 7.º, o 8.º anos. E depois quando as coisas estavam a correr bem, surgiu uma nova coisa, uma desgraça: o ensino em casa [no ensino doméstico, o aluno tem um responsável educativo e um professor-tutor; faz provas de equivalência a cada final de ciclo].
O ensino doméstico não é uma solução?
Não é perfeito. Se não houver exigência, os miúdos chegam aos exames e não sabem nada. Reprovam e não há consequências. Se for um ensino em que são obrigados a ligar um computador e o professor os está a ver, é diferente.
E um menino cigano estuda enquanto quer?
Culturalmente, não tem nada que o prive de estudar. Mas esse miúdo não tem um apoio de um pai ou uma mãe. E tem toda uma cultura por trás a fazer pressão, os amigos a perguntar “O que é que estás a fazer nessa escola? Tu sabes que a sociedade não é para nós. A gente não vai arranjar emprego.” Na praça, ele aprende o ofício que será o seu meio de subsistência. “É mais fácil aconchegar-me às minhas raízes, sabendo que aqui consigo sobreviver. Na escola, que é um mundo lá fora, não sei.” A informação não nos chega como às outras pessoas. E é fácil ter medo do que não se conhece.
Quando chega aos 14/15 anos, esse miúdo vê os amigos fora da escola, a fazer uma vida diferente, e não consegue acompanhar estes nem os outros. Dentro da escola, até pode ser educado, giro, mas é sempre o “ciganito”.
O que fez diferença para si não foi uma mudança na escola, no currículo, pais ou professores. Foi o Rendimento Social de Inserção (RSI).
Tinha 22 anos quando me candidatei e disse à minha assistente social: “Esta é a única oportunidade para mostrar ao meu pai que tenho um contrato e que para receber aquele apoio, para poder ajudar em casa, tenho que cumprir com ele. E cumprir significava fazer o curso de mediação cultural.
Quão diferente é a experiência de educação de uma menina cigana hoje, no Seixal, em relação ao que viveste há 20 anos?
A escola passou a ser uma obrigação. E quando se vai à escola porque os pais têm que comer, não se aprende nada. Os pais são os primeiros a dizer “Senão vais, cortam-me o rendimento”. É o outro lado do RSI – é precisa uma grande reforma na forma de trabalhar com a população.
Outra questão é a segregação em bairros sociais, especialmente na região de Lisboa. São sítios fechados, onde as pessoas têm todas a mesma forma de pensar.
Tem que haver muita força de vontade por parte das crianças para conseguirem vingar na escola, sem o apoio dos pais. Metade dos estudos são os pais que os fazem: são eles que veem, obrigam, acompanham. Os pais ciganos nem sabem ler nem escrever, como é que podem dar acompanhamento? E a escola é igual para todos: quem apanhou, apanhou, quem não apanhou, apanhasse.
Há uma resistência das comunidades ciganas à escola?
Se há coisa que as comunidades ciganas têm na cabeça é “Faz falta ler e escrever”. Mas não pensam na escola como um futuro para os filhos. Não pensam que dali eles podem sair com um futuro e ter outra vida.
Acha que, à partida, o acesso à escola é igual para ciganos e não-ciganos?
Não, de todo. O que falha na educação dos ciganos é a falta de mediadores nas escolas. E o Ministério da Educação e o Alto Comissariado para as Migrações já chegaram a essa conclusão. Mas continuamos sem carreira de mediador e a burocracia para contratar é tremenda.
Quando trabalhava na [Escola Básica] Nun’Álvares, havia sete miúdas no 6.º ano, porque as mães diziam: “Está lá a Sónia, dá um olhinho por elas.” No intervalo, elas sentavam-se ao pé de mim. Sentiam-se protegidas.
Um mediador faz metade do caminho com os miúdos e outra metade com os pais: todas as professoras me diziam que os pais ciganos não iam às reuniões; só num ensaio de danças ciganas, consegui ter dez mães a querer entrar para ver. Ao contrário das reuniões, aquilo diz-lhes alguma coisa. Sentem-se orgulhosas, representadas, valorizadas e, acima de tudo, enquadradas. E isso dá força para continuar.
A escola tem que ser um lugar onde os ciganos sintam que pertencem. Hoje ainda é um lugar onde ninguém nos vai aceitar, onde não temos voz ativa, onde ninguém conhece a nossa cultura nem tem interesse em conhecer.
Há uma tendência para a segregação dos alunos ciganos?
Há. Existem escolas em que os ciganos são metidos todos na mesma turma. E quem fica com ela são as professoras novas, que acabaram de chegar. Eu não acredito nesse método, porque acho que só evoluímos e aprendemos quando nos damos uns com os outros.
A socióloga e investigadora Olga Magano caracteriza a escola como uma instituição “muito castradora de outras culturas”. Há uma invisibilidade da cultura cigana nos currículos escolares?
Completamente. O grande problema das escolas é a falta de conhecimento. Não há material pedagógico para trabalhar a cultura cigana.
É uma das responsáveis pelo projeto Romano Atmo (Alma Cigana, em língua romanon), um kit pedagógico validado pelo Ministério da Educação. O que tenta agora é que ele integre o currículo escolar…
… para que os professores saibam que existe. Porque aí já não há desculpa para não se falar disso. É uma cultura que existe e que faz parte de Portugal. É preciso que a cultura cigana entre de forma positiva na casa das pessoas.
Mas a escola é uma desmotivação para muitos alunos ciganos. O professor é o ator principal para a mudança, tem que ter capacidade de chegar até eles.
Mas nos últimos anos, houve uma segunda grande evolução, além do RSI. A associação cigana Letras Nómadas, através de fundos europeus, criou bolsas universitárias para ciganos. Começou com oito, hoje somos 40. Hoje, grande parte deles estão licenciados e a tirar mestrado. E eu acredito que a mudança vai acontecer aí: quando estes técnicos forem eles a dirigir os gabinetes que trabalham com as comunidades ciganas, aí vamos trabalhar a sério.
Uma iniciativa que depois se tornou numa política pública. Através do programa Roma Educa, integrado Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, o Governo atribuiu, no ano passado, bolsas de estudos a 100 alunos do secundário.
A muitos miúdos é a primeira vez que lhes é colocada essa hipótese: “Afinal, até sou capaz.”