- 210 pessoas morreram nos protestos ocorridos em 2019
- Região é a mais letal para os defensores dos direitos humanos
- 30,8 por cento da população da América Latina vivia abaixo da linha da pobreza
- Venezuela atravessa a segunda maior crise mundial de refugiados, depois da Síria
De um lado, milhões de pessoas nas ruas em protesto contra a violência desenfreada, a desigualdade, a corrupção e a impunidade ou forçadas a abandonar os seus países em busca de segurança. Do outro, governos a restringir os direitos à manifestação e ao asilo, ignorando abertamente as obrigações nacionais e internacionais. Esta conclusão consta do relatório sobre a situação de direitos humanos nas Américas e Caraíbas em 2019.
Erika Guevara-Rosas, diretora para as Américas da Amnistia Internacional“Os direitos humanos sofreram ataques renovados em boa parte das Américas, com líderes intolerantes e cada vez mais autoritários que recorreram a táticas cada vez mais violentas para impedir as pessoas de protestar ou de encontrar segurança noutros países”
“Os direitos humanos sofreram ataques renovados em boa parte das Américas, com líderes intolerantes e cada vez mais autoritários que recorreram a táticas mais violentas para impedir as pessoas de protestar ou de encontrar segurança noutros países. Mas também vimos jovens erguendo-se para reivindicar transformações em toda a região, organizando manifestações populares, em maior escala. A sua coragem quando confrontados com a repressão brutal dos Estados dá-nos esperança e mostra que as gerações futuras não se deixarão intimidar”, comentou a diretora para as Américas da Amnistia Internacional, Erika Guevara-Rosas.
“Com ainda mais turbulência social, instabilidade política e destruição ambiental a ameaçar a região em 2020, a luta pelos direitos humanos é tão urgente hoje como nunca. E que ninguém se iluda: os líderes políticos que pregam o ódio e a divisão, num esforço para demonizar e enfraquecer os direitos, vão ver que estão do lado errado da história”, nota a mesma responsável.
No ano passado, surgiram movimentos de protesto, em muitos casos liderados por jovens, que reivindicavam responsabilização e respeito pelos direitos humanos em países como Venezuela, Honduras, Porto Rico, Equador, Bolívia, Haiti, Chile e Colômbia. No entanto, em vez de criar mecanismos para promover o diálogo e responder aos manifestantes, a maioria das autoridades respondeu com táticas repressoras e mais militarizadas.
A Amnistia Internacional documentou, pelo menos, 202 mortes violentas em contexto de protestos: 83 no Haiti, 47 na Venezuela, 35 na Bolívia, 23 no Chile, oito no Equador e seis nas Honduras.
A América Latina voltou a ser a região mais perigosa do mundo para os defensores e as defensoras dos direitos humanos. Aqueles que se dedicam a proteger os direitos à terra, ao território e ao meio ambiente correram risco especial de ser alvos de assassinatos seletivos, criminalização, deslocamento forçado e assédio. A Colômbia continuou a ser o país mais letal, tendo sido palco de, pelo menos, 106 homicídios – a maioria, líderes indígenas, negros e camponeses. O conflito armado interno seguiu sem interrupções.
O México foi um dos países mais letais do mundo para jornalistas – pelo menos, dez foram assassinados em 2019. Além disso, houve um número recorde de homicídios, revelando o fracasso da Guarda Nacional militarizada e da aprovação de uma nova lei sobre o uso da força.
Nos Estados Unidos da América (EUA), a violência com armas de fogo continua a ser uma das maiores preocupações de direitos humanos. No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro assinou uma série de decretos e ordens executivas que, entre outros resultados preocupantes, enfraqueceram a regulamentação da posse e do porte.
Migrantes visados
O número de homens, mulheres e crianças que fugiram da crise de direitos humanos na Venezuela chegou a cerca de 4,8 milhões – um número sem precedentes nas Américas. Contudo, Peru, Equador e Chile reagiram com novas exigências restritivas à chegada de estrangeiros, bloqueando a entrada de venezuelanos que necessitam de proteção internacional.
O governo dos EUA usou, indevidamente, o sistema de justiça para perseguir os defensores e as defensoras dos direitos dos migrantes, deteve crianças que fugiam de situações de violência e implementou novas políticas para atacar e restringir o direito ao asilo, violando as obrigações que tem à luz da lei internacional. A administração de Donald Trump forçou ainda dezenas de milhares de pessoas a esperar no México, em condições perigosas, ao abrigo do “Protocolo de Proteção a Migrantes”, também conhecido como a política “Permanecer no México”. Outros problemas documentados são os programas sigilosos de deportação rápida, que leva a que estas pessoas deixem de ter apoio jurídico, e a pressão feita a países vizinhos, como a Guatemala, El Salvador e as Honduras, para assinarem uma série de acordos de “Terceiro País Seguro”.
Após a ameaça norte-americana de novas tarifas comerciais, o governo mexicano não só concordou em receber e acolher requerentes de asilo devolvidos à força sob o “Protocolo de Proteção a Migrantes”, como também enviou tropas para impedir migrantes centro-americanos de chegar até a fronteira entre os EUA e o México.
Impunidade, ambiente e violência de género
A impunidade continua a ser generalizada na região. O governo guatemalteco dificultou o acesso à justiça para as vítimas de violações graves dos direitos humanos, já que encerrou a Comissão Internacional Contra a Impunidade na Guatemala, no ano passado. As preocupações ambientais continuaram a aumentar, com a administração de Donald Trump a anunciar, formalmente, a intenção de se retirar do Acordo de Paris. Ao mesmo tempo, graves crises na Amazónia afetaram povos indígenas do Brasil, da Bolívia, do Peru e do Equador.
No caso específico do Brasil, as políticas de Jair Bolsonaro alimentaram incêndios devastadores na Amazónia, deixando as comunidades tradicionais em perigo contra a extração ilegal de madeira e a criação de gado.
Tendo chegado ao poder no início de 2019, o presidente brasileiro rapidamente colocou em prática o seu discurso contra os direitos humanos. A morte da política e ativista Marielle Franco, em 2018, continua por resolver.
Erika Guevara-Rosas, diretora para as Américas da Amnistia Internacional“Não podemos permitir que os governos das Américas continuem a repetir os erros do passado. Em vez de restringir os direitos humanos conquistados, precisam de ampliá-los”
A violência de género e os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres continuam a ser um problema na região das Américas e Caraíbas. Na República Dominicana, a polícia violou, espancou e humilhou trabalhadoras do sexo, em atos que podem ser considerados como tortura. Em El Salvador, onde o aborto é ilegal, as autoridades continuaram a criminalizar mulheres e meninas – especialmente as de origem pouco privilegiada. Na Argentina, a cada três horas, uma menina com menos de 15 anos deu à luz, a maioria devido a gravidezes forçadas decorrentes de violência sexual.
Otimismo para 2020
O último ano também trouxe algumas notícias positivas. Até ao final de 2019, 22 países assinaram o Acordo de Escazú, um inovador tratado regional sobre os direitos ambientais. Em fevereiro, o Equador tornou-se o oitavo país a ratificar o documento, faltando apenas três para que entre em vigor.
Nos Estados Unidos, um tribunal do Arizona absolveu o voluntário Scott Warren da acusação de proteger dois migrantes, depois de ter oferecido comida, água e um lugar para dormir. Um juiz federal também revogou a condenação de quatro outras pessoas por acusações semelhantes.
A absolvição de Evelyn Hernández, acusada de homicídio agravado depois de sofrer uma emergência obstétrica em El Salvador, foi outra vitória para os direitos humanos, embora alguns procuradores tenham recorrido. Mulheres e jovens também se destacaram à frente de movimentos bem evidenciados em várias manifestações feministas em países como Argentina, México e Chile.
“Não podemos permitir que os governos das Américas continuem a repetir os erros do passado. Em vez de restringir os direitos humanos conquistados, precisam de ampliá-los para criar uma região onde todos possam viver em liberdade e segurança”, sublinha Erika Guevara-Rosas.