26 Agosto 2016

O ativista pacífico Hussam (nome fictício para proteção de identidade) conseguiu sobreviver aos 20 meses que esteve preso e em que foi torturado em Saydnaya, uma das mais brutais e infames prisões sírias. Atualmente a cumprir pena noutro local, escreveu esta carta onde tenta mostrar o “inferno diário” pelo qual passou.

 

 

 

“A quem possa interessar,

Aquilo que vos conto não é ficção nem para vos pedir a vossa simpatia.

Dos escuros calabouços em que estamos, de onde não se vê o sol, levantamos as nossas vozes e procuramos um eco. Pedimos-vos que façam parar este esvair das vidas dos homens e mulheres da Síria. Que parem o fogo que consume os jovens nas prisões e nos centros de detenção do Presidente [Bashar] al-Assad.

Estes jovens não pertencem a este lugar. Não nasceram para não serem mais do que um pedaço de papel nas mãos de Assad e do seu regime ditatorial, nem achas na fogueira que [o Presidente] põe a arder com ódio e desejo de vingança – e tão só porque sonhamos com um país digno que protege os nossos direitos.

Escrevo para vos lembrar dos milhares de almas que se perderam, e que continuam a perder-se. E para vos dizer como a nossa dignidade é sufocada, para vos falar das mortes arbitrárias que acontecem em todos os átomos de ar à nossa volta, na água que bebemos, no cassetete do guarda-prisional que devora o que nos resta de pele e carne, dos nossos fracos e magros corpos.

Faltam-me as palavras quando tento descrever o inferno em que vivemos todos os dias, que acaba com um de nós a morrer, o corpo embrulhado num cobertor. E onde a escolha é entre uma morte rápida às mãos de um interrogador que não gosta das nossas respostas, ou uma morte lenta numa jaula que vagarosamente nos consome os corpos.

O medo nunca desaparece, nem mesmo depois de sairmos da prisão – o medo de regressar a Saydnaya, pelos que acabaram de lá entrar, pelos amigos que lá deixámos, o medo do som dos portões de metal, e os gritos que não me deixam até eu adormecer.

É o medo das deslocações para o tribunal, o medo do frio, o medo da doença, da fome que não se compara a nenhuma outra fome. Sobrevivemos a comer cascas de ovos, cascas de laranjas se as conseguirmos encontrar, até terra.

Fomos testados com a fome derradeira. Põe comida mesmo à nossa frente mas não podemos tirar nem numa só migalha de pão. Não nos atrevemos sequer a tocar-lhe, pois o castigo por o fazermos depende da disposição com que o guarda estiver.

Testaram-nos com a sede até os nossos lábios se colarem e não os conseguirmos separar. E depois vimos como é que se morre caso nos queixemos de estar doentes ou peçamos medicamentos.

Os nossos corpos definham e ficam tolhidos de doenças. Quem está a salvo de tuberculose não está a salvo de diarreias, de sarna ou de infeções.

Despedimo-nos de muitos dos nossos amigos e esperamos pela nossa vez [de morrer] a qualquer momento. Às vezes rogamos pela morte porque nela está o fim do sofrimento.

E passámos por tudo isto sem ninguém saber onde estávamos, doentes nas noites frias de Saydnaya, sem ninguém que ouvisse os nossos gritos sob os chicotes que nos cortavam os corpos.

Uma nova vida abriu-se para mim quando fui transferido de Saydnaya para outra prisão. Por isso, peço-vos, em meu nome e em nome dos meus amigos que continuam presos: façam todos os esforços para resgatar todos os prisioneiros. E façam parar este regime criminoso que nos mantém e aos nossos amigos em centros de detenção durante cinco anos consecutivos num sofrimento que não é possível descrever.

A dor nunca desaparece.

Alguém que continua preso”

 

Esta carta foi partilhada com a Amnistia Internacional pela Save the Rest, uma campanha síria de direitos humanos que se centra em assuntos de detenção arbitrária e de desaparecimentos forçados.

 

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