13 Outubro 2015

Em missão de investigação no Norte da Síria, a Amnistia Internacional detetou estar a ocorrer uma vaga de desalojamentos e deslocações forçadas das populações e demolições de casas civis que constituem crimes de guerra cometidos pelas forças da Administração Autónoma lideradas pelo Partido da União Democrática (PYD, curdo sírio), o qual controla aquela região do país. No novo relatório, publicado esta terça-feira, 13 de outubro, a organização de direitos humanos documenta a conduta da Administração Autónoma, aliado crucial no terreno da coligação liderada pelos Estados Unidos que combate na Síria o grupo armado jihadista auto intitulado Estado Islâmico.

O relatório – intitulado “’We had nowhere to go’: Forced displacement and demolitions in northern Syria” (“Não tínhamos para onde ir”: desalojamentos forçados e demolições no Norte da Síria) – contém provas de abusos alarmantes, incluindo testemunhos oculares e imagens de satélite que mostram a deslocação forçada e deliberada de milhares de civis e a demolição de vilas e aldeias inteiras que estão sob o controlo da Administração Autónoma. Frequentemente, estes atos surgem em retaliação ao entendimento que as forças tuteladas pelo PYD têm de uma simpatia, ou ligações, dos habitantes a membros do Estado Islâmico ou outros grupos armados.

“Com a demolição deliberada de casas civis e em alguns casos mesmo de destruição e incêndio de vilas e aldeias inteiras, desalojando os habitantes sem nenhumas justificações militares, a Administração Autónoma está a abusar da sua autoridade e a desprezar de forma descarada a lei internacional humanitária, cometendo ataques que constituem crimes de guerra”, sustenta a perita da Amnistia Internacional em situações de crise Lama Fakih.

Na luta contra o Estado Islâmico, “a Administração Autónoma parece estar a atropelar os direitos dos civis apanhados no meio do conflito”, avalia a perita. Lama Fakih descreve que a missão da Amnistia Internacional testemunhou “uma vaga extensa de desalojamentos e de destruição que não se deve aos combates”: “Este relatório expõe provas claras de uma campanha deliberada e coordenada de punição coletiva dos civis em aldeias e vilas antes capturadas pelo Estado Islâmico ou onde uma pequena minoria dos residentes é tida como apoiantes do grupo”.

Alguns civis entrevistados pelos investigadores da organização de direitos humanos disseram terem sido ameaçados com ataques aéreos da coligação liderada pelos Estados Unidos caso se recusassem a partir das suas casas.

A equipa da Amnistia Internacional visitou 14 vilas e aldeias nas regiões de Raqqa e de Hasakeh em julho e agosto de 2015, onde investigou desalojamentos forçados de residentes e demolição de casas em zonas que se encontram sob o controlo da Administração Autónoma.

Imagens de satélite obtidas pela organização de direitos humanos ilustram bem a escala das demolições feitas na aldeia de Husseiniya, na região rural de Tel Hamis (de população predominantemente árabe). Estas imagens mostram a existência de 225 edifícios em junho de 2014 e apenas 14 permanecem de pé em junho de 2015 – uma diminuição nas estruturas a chegar a uns chocantes 93,8%.

Casa atrás de casa demolida por bulldozers

Em fevereiro passado a ala militar da Administração Autónoma – as Unidades de Defesa do Povo (YPG) – conquistou aquela zona, que estivera sob o controlo do Estado Islâmico, e prontamente começaram as demolições, desalojando os habitantes. Os investigadores da Amnistia Internacional viram as ruínas das casas destruídas e entrevistaram testemunhas oculares.

“Tiraram-nos à força das nossas casas e começaram a incendiá-las… trouxeram os bulldozers… Demoliram casa atrás de casa até que a aldeia inteira ficou destruída”, contou uma testemunha.

Nas aldeias para sul da cidade de Suluk, alguns moradores descreveram que os combatentes das YPG os acusaram de apoiarem o Estado Islâmico e os ameaçaram de disparar contra eles caso se recusassem a partir. Em alguns casos, os habitantes destas zonas indicaram que haveria uns quantos apoiantes do grupo armado jihadista nas suas aldeias mas também que a vasta maioria dos residentes não são simpatizantes do Estado Islâmico.

E em outros casos, os aldeões dão conta de que combatentes das YPG lhes ordenaram que abandonassem as suas casas ameaçando-os com ataques aéreos da coligação liderada pelos Estados Unidos se não obedecessem. “Disseram-nos que tínhamos de partir ou diriam à coligação norte-americana que éramos terroristas e os aviões deles iriam bombardear-nos e às nossas famílias”, relatou Safwan, residente numa daquelas aldeias do Norte da Síria.

As YPG justificam os desalojamentos e a deslocação forçada dos civis com o argumento de que tal é imperioso para a proteção da própria população ou por necessidade militar.

“É crucial que a coligação liderada pelos Estados Unidos que combate o Estado Islâmico na Síria, e todos os outros países que apoiam a Administração Autónoma, ou que com ela coordenam esforços militares, não virem as costas a estes abusos. Têm de condenar publicamente as deslocações forçadas e as demolições ilegais, e também garantir que a assistência militar que estão a prestar não contribui para violações da lei internacional humanitária”, insta Lama Fakih.

Num destes perversos ataques, combatentes das YPG derramaram gasolina numa casa e ameaçaram deitar-lhe fogo enquanto os habitantes ainda se encontravam dentro do edifício.

“Começaram a deitar gasolina sobre a casa dos meus sogros. A minha sogra estava lá dentro e recusava-se a sair e então eles deitaram gasolina em cima dela. Depois encontraram o meu sogro e bateram-lhe nas mãos. Disse-lhes que mesmo que queimassem a minha casa eu arranjaria uma tenda e iria montá-la ali. Disse-lhes que aquela era a minha casa, o meu lugar. E que não partiria”, contou Bassma aos investigadores da Amnistia Internacional.

Árabes, turcomanos e curdos visados nos abusos

A maioria dos residentes afetados por estas práticas ilegais são árabes e turcomanos, mas em alguns casos – como acontece na cidade de Suluk, com população mista – habitantes curdos também foram impedidos pelas unidades militares YPG e pela Asayish (força policial da Administração Autónoma) de regressarem às suas casas. Noutras zonas, como na aldeia de Abdi Koy, um pequeno número de habitantes curdos foram deslocados à força das suas casas pelas YPG.

Entrevistado pelos investigadores da Amnistia Internacional, o líder da Asayish reconheceu que civis têm sido forçados a abandonar as suas casas, mas desvalorizou estes atos como “incidentes isolados”. Porta-voz das YPG, por seu lado, repetiu a ideia de que as populações civis estavam a ser deslocadas para sua própria segurança.

Porém, muitos moradores testemunharam terem sido forçados a partir das suas casas apesar de as suas aldeias e vilas não serem zonas de combate ou estarem a uma distância segura da linha da frente, e ainda não haver perigo de engenhos explosivos improvisados colocados no terreno pelo Estado Islâmico.

Deslocar à força civis das suas residências sem a verificação válida de uma necessidade militar imperativa é uma violação da lei internacional humanitária.

“A Administração Autónoma tem de parar imediatamente com as demolições ilegais das casas civis, tem de compensar todos os civis cujas residências foram ilegalmente destruídas, e tem de pôr fim aos desalojamentos e deslocações forçadas das populações, além de permitir aos civis regressarem e reconstruirem as suas habitações”, remata a perita da Amnistia Internacional.

 

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