7 Setembro 2015

O governo autónomo do Partido da União Democrática, no Norte da Síria, está a usar o combate ao terrorismo na região, e em particular contra o grupo armado jihadista auto intitulado Estado Islâmico, como pretexto para deter ilegalmente e julgar injustamente críticos pacíficos da sua governação e civis que as autoridades locais creem ser simpatizantes ou membros de alegados grupos terroristas, denuncia a Amnistia Internacional.

Investigadores da organização de direitos humanos entrevistaram dez pessoas que estiveram ou permanecem detidas em prisões geridas pela administração autónoma do Partido da União Democrática (PYD, o principal partido curdo da Síria), durante uma missão no terreno no Norte do país.

Alguns daqueles detidos estiveram presos durante períodos até um ano sem lhes ser deduzida nenhuma acusação nem serem levados a julgamento. E aqueles que foram apresentados em tribunal testemunharam que passaram por extensas detenções pré-julgamento e que os procedimentos judiciais foram flagrantemente injustos. Estas testemunhas declararam ainda que lhes foram negados os direitos mais essenciais, incluindo o de se defenderem a si próprios, verem as provas reunidas contra si, assim como o acesso a advogado e a familiares.

“A administração autónoma do PYD não pode usar a luta contra o terrorismo como desculpa para violar os direitos das pessoas nas regiões que estão sob o seu controlo”, frisa a perita da Amnistia Internacional em situações de crise Lama Fakih. “Recorrer a tácticas de mão pesada em nome da segurança, como a detenção de suspeitos com base nas suas opiniões ou muito ténues afiliações, sem nenhumas provas, irá seguramente ter efeitos negativos e nada fazer para melhorar a segurança. Independentemente dos alegados crimes, os direitos essenciais dos detidos a um julgamento justo e a não serem detidos arbitrariamente têm de ser respeitados e cumpridos”, prossegue.

O PYD mantem uma governação de facto de vastas zonas do Norte da Síria desde a retirada das forças governamentais do país em 2014, tendo a sua própria polícia, tribunais, prisões e leis.

A região sob controlo do PYD, e das suas milícias Unidades de Defesa do Povo (YPG), é alvo de ataques regulares do Estado Islâmico. Além de atacar as YPG e também postos de controlo e membros da Asayis (a polícia, sob tutela do PYD), o Estado Islâmico tem igualmente lançado ataques contra áreas civis que estão no controlo territorial do governo do PYD, causando a morte, raptando e forçando os habitantes a abandonarem as suas casas.

Em 2014, o governo do PYD aprovou uma nova lei antiterrorismo à qual tem recorrido para deter, acusar e julgar alegados suspeitos de terrorismo.

Como governo de facto da região sob administração autónoma, o PYD está obrigado a respeitar a legislação de direitos humanos e as leis internacionais humanitárias, incluindo no que toca à proibição de detenções arbitrárias e à obrigação de garantir julgamentos justos.

Muitos detidos entrevistados pelos investigadores da Amnistia Internacional disseram terem sido detidos por atos que não são reconhecidos como ofensas criminais e frequentemente também sem nenhumas provas de conduta criminosa contra eles. Aliás, algumas das pessoas detidas não foram sequer informadas das acusações formuladas contra elas, nem tão pouco apresentadas perante um procurador nem um juiz. De cinco detidos entrevistados que acabaram condenados em acusações relacionadas com terrorismo, quatro declararam que as suas sentenças foram proferidas na sequência de julgamentos flagrantemente injustos, sem serem apresentadas quaisquer provas substanciais da sua culpa.

Detenções arbitrárias

Vários entrevistados relataram à Amnistia Internacional que foram detidos de forma arbitrária, com base num capricho, sem provas nem indícios consubstanciados, como represália por se oporem pacificamente ou criticarem as autoridades do governo de facto do PYD, ou ainda por serem tidos como de alguma forma associados a grupos terroristas.

Fahed, de 65 anos, um árabe oriundo da cidade de Hasakeh, que esteve detido durante dois meses junto com três dos seus filhos, contou aos investigadores da Amnistia Internacional que membros das Asayis os levaram de casa para a prisão porque familiares da nora tinham ligações ao Estado Islâmico. Fahed asseverou não ter nenhuma ligação nem afiliação com o grupo jihadista.

Num outro caso, Omar, de 30 anos, árabe de Hasake, descreveu ter ficado detido durante quase um mês e acusado de terrorismo porque o seu nome era parecido com o de um outro homem que a polícia local procurava. Não foi apresentada nenhuma prova contra ele, contou este homem à Amnistia Internacional. Segundo Omar, mais de uma dezena de outros árabes da sua cidade foram igualmente detidos sob suspeita de atividades terroristas e mantidos em detenção por 15 a 20 dias antes de serem libertos por nenhumas provas terem sido reunidas contra eles.

E Malek, de 35 anos, árabe da cidade de Raqqa, contou aos investigadores da Amnistia Internacional que foi acusado de atos terroristas, mas que a única prova apresentada contra ele consistia em posts e comentários que publicara no Facebook e nos quais criticava o PYD sem qualquer conteúdo ameaçador nem violento.

A força policial do PYD tem usado a lei antiterrorismo também para deter e acusar grupos curdos da oposição que criticam a governação feita na região. Responsáveis do Partido Democrata Curdo da Síria (PDK-S) declararam à Amnistia Internacional que 12 membros do partido foram arbitrariamente detidos em 2014 em Afrin, cidade sob a administração do PYD, e subsequentemente condenados por atos terroristas sem provas a sustentarem as acusações e a sentença.

A Amnistia Internacional insta o governo autónomo de facto do PYD a pôr fim as estas detenções arbitrárias e a libertar todos os detidos que são mantidos ilegalmente nas prisões. As detenções não podem ser feitas sem um mandado de captura ou para parar um crime que está a ocorrer. As detenções arbitrárias constituem uma violação do próprio documento constitucional – o Contrato Social – adotado pelas autoridades locais em janeiro de 2015, o qual garante o direito de não ser arbitrariamente detido.

Todos os detidos acusados de terrorismo ouvidos pela Amnistia Internacional descreveram que as condições nas prisões centrais eram adequadas. Os investigadores da organização de direitos humanos puderam também observar que as celas das prisões nestes locais não se encontravam sobrelotadas e tinham camas, luz adequada e instalações sanitárias. Os detidos não declararam também terem sido alvo de maus-tratos nem de tortura nas prisões centrais que a missão da Amnistia Internacional visitou. Antes declararam que recebiam três refeições por dia, tinham pelo menos uma hora nos pátios exteriores da prisão, que lhes foram prestados cuidados médicos sempre que precisaram e que tinham direito a receber uma visita de um familiar por semana, assim como a fazerem uma chamada telefónica semanal.

Mas dois prisioneiros no centro de detenção pré-julgamento sob a tutela das Asayis em Amouda, cidade na zona nordeste da Síria perto da fronteira com a Turquia, deram conta da ocorrência de maus-tratos e de más condições prisionais.

Mohamad (nome fictício para proteção de identidade do entrevistado) esteve na prisão de Amouda durante seis meses, desde agosto de 2014. Contou que partilhou uma cela com outras 12 pessoas; que não lhe foi permitido tomar duche durante o primeiro mês, nem sair para as zonas ao ar livre. Foi também alvo de abusos verbais por parte dos guardas prisionais porque vivera numa zona do país controlada pelo Estado Islâmico.

“Os guardas prisionais humilharam-me porque fui acusado de ser apoiante do Estado islâmico. Disseram-me que eu merecia bem pior do que ficar preso numa cela subterrânea”, contou esta testemunha. Outro detido naquela mesma prisão em Amouda, e que foi entrevistado numa outra ocasião pelos investigadores da Amnistia Internacional, disse ter sido alvo do mesmo tipo de abusos e maus-tratos.

Detenções prolongadas a aguardar julgamento

Muitos detidos reportaram à Amnistia Internacional que estiveram em detenção a aguardar julgamento por períodos que chegaram a um ano sem serem julgados. Alguns contaram que nem sequer foram formalmente acusados e que nunca foram questionados pelos procuradores nem levados a tribunal.

Num desses casos, Safwan, cidadão não sírio, estava detido há quase um ano quando foi entrevistado pela Amnistia Internacional; nunca fora acusado, nunca vira o procurador nem fora apresentado a um juiz. Segundo as leis aprovadas pelo PYD, os detidos em pré-julgamento só podem ser mantidos na prisão pelo máximo de 72 horas até os procuradores formalizarem acusações e devem então ser transferidos para uma prisão central a aguardar o julgamento.

Um outro detido, Issam, contou à Amnistia Internacional que foi raptado pelo Estado Islâmico quando viajava para Raqqa e obrigado a dar aos combatentes do grupo jihadista informações sobre a localização de um posto de controlo das Unidades de Defesa do Povo (o braço armado do PYD). “Entreguei-me aos Asayis a tempo de estes conseguirem ainda evitar o ataque [ao posto de controlo]. Posso ser culpado mas tinha expectativa num julgamento justo”, referiu. Em vez disso passou seis meses em detenção pré-julgamento, não foi informado das acusações contra ele e acabou condenado a sete anos de pena de prisão e sete anos de exílio. “Foi-me dita a sentença por um juiz numa sala sem que eu tivesse advogado, nem a oportunidade de me defender a mim mesmo”, contou ainda.

E Mohamad, que foi detido em agosto de 2014, relatou também o julgamento injusto que teve: “Quando me interrogaram disseram-me que eu estava inocente e que seria liberto dentro de 15 dias… Em vez disso fui condenado a dez anos de prisão na sequência de uma audiência com um juiz que durou dez minutos. O juiz recusou-se a mostrar-me as provas que tinham contra mim”.

Num dos casos investigados pela Amnistia Internacional, um civil foi detido e julgado perante um tribunal militar.

O diretor das Asayis, Ciwan Ibrahim, sustentou à Amnistia internacional que os detidos têm acesso a advogado e que as famílias são notificadas sobre os seus paradeiros após a detenção, e que são-lhes permitidas visitas de familiares e de aconselhamento legal assim que as investigações são dadas por completas (normalmente ao fim de um mês). Mas muitos detidos testemunharam que os pedidos de advogado que fizeram foram ignorados pelas autoridades policiais locais e que estiveram privados de comunicar com os familiares ao longo de vários meses. Apenas um dos detidos entrevistados pelos investigadores da Amnistia Internacional disse ter advogado.

“É patente que muitos detidos enfrentaram julgamentos injustos e com uma série de violações dos seus direitos. Todos têm de ter o direito de se defenderem perante tribunais justos. Em vez de atropelarem os direitos das pessoas em nome da segurança e do antiterrorismo, o governo de facto do PYD tem é de assegurar que os direitos dos detidos são respeitados”, reitera a perita da Amnistia Internacional em situações de crise Lama Fakih.

A Amnistia Internacional defende que todos os detidos sob a tutela do PYD têm de ser imediatamente apresentados em juízo e informados sobre as acusações formuladas contra eles, assim como lhes deve ser garantido acesso a advogado e aos familiares. Acresce que civis não podem jamais ser julgados por tribunais militares.

 

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