17 Dezembro 2013

A abolição do sistema de campos de “reeducação pelo trabalho” (RTL) na China, anunciada em novembro passado, arrisca não ser mais do que uma mudança cosmética, estando as autoridades chinesas já a pôr em marcha outras formas de repressão, denuncia a Amnistia Internacional em nova investigação divulgada esta terça-feira.

No relatório, intitulado “Changing the soup but not the medicine? – Abolishing re-education through labour in China”, é detalhado como as autoridades chinesas estão a usar cada vez mais as chamadas “prisões negras” (centros de detenção extralegais), centros de reabilitação forçada de toxicodependência e centros de lavagem cerebral para substituir o sistema repressivo dos campos de “reeducação pelo trabalho” (laojiao em chinês).

“Abolir o sistema de RTL é um passo na direção certa. Mas há agora indicadores de que isto pode bem ser não mais do que uma mudança cosmética, apenas para desviar as atenções públicas dos abusos cometidos naqueles campos, onde a tortura é uma prática sistemática”, sustenta Corinna-Barbara Francis, investigadora da Amnistia Internacional sobre a China. “É claro que as políticas subjacentes de castigar as pessoas pelas suas atividades políticas ou pelas suas crenças religiosas não mudaram. Os abusos e a tortura continuam, apenas assumiram uma maneira diferente”, prossegue a perita.

A 15 de novembro passado, a China anunciou a decisão de abolir o sistema de RTL, campos criados por Mao Tsetung, em 1957, para punir delitos menores, e os quais têm sido usados ao longo de décadas para deter centenas de pessoas, se não mesmo milhares, sem lhes serem deduzidas quaisquer acusações nem serem levadas a julgamento. Um relatório das Nações Unidas, de 2009, estimava que estavam detidas nesse ano cerca de 190 mil pessoas nos mais de 300 campos RTL da China.

O processo de “reeducação” sujeita frequentemente aqueles que são detidos pelas suas convicções e atividades políticas, religiosas ou pessoais a tortura de forma a fazê-los renunciar àquilo em que acreditam e abandonarem os comportamentos considerados indesejáveis pelo regime.

Meras mudanças de nome das mesmas prisões

A Amnistia Internacional apurou nesta investigação que as autoridades chinesas, ao mesmo tempo que se prestam a encerrar os RTL, estão a usar cada vez mais outras formas de punir exatamente o mesmo tipo de pessoas.

Muitos daqueles velhos campos de “reeducação pelo trabalho” estão a ser refeitos, em alguns casos apenas com uma simples mudança de designação. Alguns foram reabertos, ou apenas renomeados centros de reabilitação de toxicodependência (agora chamados RTL de drogas) – e muitos pouco ou nada oferecem no que toca a uma verdadeira reabilitação do uso de drogas, antes operam de forma idêntica aos campos de “reeducação pelo trabalho”, onde as pessoas eram detidas durante vários anos, obrigadas a trabalho forçado e sujeitas a abusos.

As autoridades chinesas têm também vindo a expandir a rede de centros de lavagem cerebral, os quais são às vezes referidos de forma oficial como “aulas de educação legal” e foram criados essencialmente como locais onde os adeptos de Falun Gong (prática de culto da mente e do corpo) são coagidos a renunciarem às suas convicções, amiúde através de tortura e de outros tratamentos abusivos.

Mais. Têm usado cada vez mais ativamente as chamadas “prisões negras”, que são centros extralegais de detenção quase sempre instalados em locais aparentemente aleatórios como hotéis e edifícios abandonados e que servem para encarcerar pessoas que apresentam queixas ou denúncias de atos ou decisões das autoridades. Estas prisões não têm nenhum enquadramento na legislação chinesa e as autoridades continuam mesmo a negar a sua existência, deixando aqueles que ali estão detidos sujeitos a um ainda maior risco potencial de violação dos direitos humanos do que acontece no sistema de RTL.

A tortura é, aliás, já uma prática sistemática e galopante tanto nas “prisões negras” como nos centros de lavagem cerebral. Antigos detidos nestas instalações revelaram à Amnistia Internacional como foram brutalmente espancados, em algumas ocasiões com bastões elétricos, sujeitos a afogamentos simulados ou presos a um potro de tortura (mecanismo que estica os membros até serem deslocados do corpo), injetados com substâncias desconhecidas, ou deixados sem nenhum alimento.

Espancados à chegada aos campos

Zhang Lianving, de 52 anos, foi enviada três vezes para um campo RTL por se recusar a abandonar as suas convicções religiosas. No enorme campo de Masanjia, um dos maiores campos de “reeducação pelo trabalho” na China, foi torturada no potro dezenas de vezes, numa das ocasiões mais de 20 vezes ao longo de vários dias. Teve de suportar esta tortura estando nua, sem lhe darem quaisquer alimentos, nem água, sendo impedida de dormir e de usar as casas-de-banho durante todo o tempo.

Esta antiga prisioneira contou à Amnistia Internacional que foi espancada assim que chegou ao campo. “Um guarda esmurrou-me a cara repetidas vezes, de punho cerrado, outras vezes com as algemas. Forçaram-me a abrir a boca e depois os guardas batiam-me com conchas de metal nos lábios e nos dentes. O sangue jorrava da minha boca. Os guardas do campo, homens e mulheres, agarravam-me pelos cabelos e batiam-me com a cabeça contra uma parede ou uma mesa”.

Outros que estiveram detidos nos campos relataram como foram submetidos e tortura psicológica, com os guardas a dizerem-lhes que eram culpados do fim dos seus casamentos e a ameaçar que iriam perseguir os seus familiares. Era-lhes recusada a visita da família até que “confessassem”. Os detidos nos RTL eram também forçados a disciplinar e “reeducar” outros presos.

“Muitos dos detidos que passaram vários anos em campos RTL estão agora a ser enviados para as ‘prisões negras’, para os centros de lavagem cerebral ou RTL de drogas, porque continuam a recusar-se a renegar as suas convicções e a abrir mão dos seus direitos”, explica Corinna-Barbara Francis.

Esta investigadora da Amnistia Internacional frisa que “as autoridades chinesas têm de pôr fim imediatamente a todas as formas de detenção arbitrária e garantir que são cumpridas leis de proteção dos detidos que respeitam os padrões internacionais de direitos humanos”. “Tem de haver uma mudança fundamental nas políticas que estão no cerne da repressão e que privam os presos dos seus direitos mais básicos. Enquanto aquelas políticas existirem, as autoridades chinesas vão sempre encontrar formas de punir as pessoas que veem como uma ameaça”, sustenta.

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