4 Dezembro 2014

Uma enraízada cultura de impunidade permite às forças policiais nas Filipinas agirem sem qualquer apuramento de responsabilidades, é exposto no novo relatório da Amnistia Internacional que marca o arranque de uma forte campanha da organização de direitos humanos para erradicar as práticas de tortura naquele país.

Above the Law: Police Torture in the Philippines” (Acima da lei: a tortura policial nas Filipinas), divulgado esta quinta-feira, 4 de dezembro, demonstra que os agentes da polícia continuam a recorrer a métodos como a eletrocussão, a simulação de execução, waterboarding (simulação de afogamento, ilustrada na imagem), asfixia com sacos de plástico, espancamentos e violações para extrair confissões a detidos ou extorquir pessoas. E esta cultura persiste apesar de as Filipinas terem assinado e ratificado os dois principais tratados internacionais contra a tortura.

“Demasiados polícias nas Filipinas usam a força muito para além da autoridade de que estão investidos – cometem abusos de poder ao mesmo tempo que desrespeitam em absoluto o dever que têm de proteger e servir os cidadãos”, denuncia o secretário-geral da Amnistia Internacional, Salil Shetty, que esteve presente no lançamento da campanha focada nas Filipinas, em Manila. “O Governo tem a legislação como deve ser; agora tem de a fazer cumprir ou arrisca-se a que a polícia se coloque acima da lei”, frisa.

A adoção no país da progressista Lei Contra a Tortura, há cinco anos, deveria ter sido um marco histórico, mas nem um só agente das forças policiais foi condenado até hoje – o que põe em causa o sucesso daquela legislação.

As Filipinas são um dos cinco Estados que estão no centro das atenções da campanha global da Amnistia Internacional STOP Tortura, num momento crucial para o desenvolvimento do país. E o relatório “Above the Law” detalha como e porque é que o Governo filipino está a falhar na tarefa de fazer cumprir a proibição das práticas de tortura.

“As Filipinas estão a fazer um mau serviço a si mesmas – o país tem um currículo exemplar no que toca a assinar tratados de direitos humanos, mas sem um sistema robusto e sólido de investigação e julgamento dos torturadores estes compromissos assumidos em matéria de direitos humanos estão em risco de se transformarem em promessas vãs”, avalia ainda Salil Shetty. “O governo filipino está a desperdiçar uma oportunidade para se tornar num exemplo extraordinário de compromisso verdadeiro com os direitos humanos na Ásia”, prossegue o secretário-geral da Amnistia Internacional.

O novo relatório assenta numa profunda investigação da organização de direitos humanos, que inclui a recolha de testemunhos arrepiantes de mais de 55 sobreviventes de tortura desde 2009, ano em que entrou em vigor nas Filipinas a lei que criminaliza a tortura. Destes, 21 eram menores na altura em que foram torturados e submetidos a outros maus-tratos. E oito destas testemunhas descreveram ter sido ameaçadas pelos polícias com armas apontadas ou sujeitas à “roleta russa”.

Tortura filmada e sem condenações

Above the Law” documenta também uma série de tentativas de execuções extrajudiciais, com dois sobreviventes a reportarem à Amnistia Internacional que foram alvejados a tiro e abandonados à morte.

Num incidente especialmente horrível, familiares de Darius Evangelista, um porteiro que foi detido pela polícia em Manila, identificaram-no pela sua cabeça decepada e com três tiros de arma. Detidos que estiveram com aquele homem na prisão relataram à Amnistia Internacional que Darius foi levado para o gabinete de um oficial da polícia com os olhos tapados por fita adesiva e que, à saída, o oficial deu a outros polícias ordem para “acabar com ele”. Darius não voltou a ser visto vivo.

Um vídeo particularmente angustiante – aparentemente filmado com um telemóvel – foi posteriormente transmitido por canais de televisão filipinos e internacionais. As imagens mostram Darius a gritar e a contorcer-se de dor, enquanto um homem agarra um fio atado ao seu pénis e o puxa com força repetidas vezes. É claramente visível no vídeo a presença de polícias uniformizados. E, apesar da existência destas provas, nenhum dos agentes envolvidos foi condenado; três dos sete polícias acusados neste caso de tortura estão com paradeiro desconhecido.

A crueldade das forças policiais nas Filipinas é ainda acompanhada de um total desprezo pela acuidade das informações e detalhes. Jerryme Corre contou à Amnistia Internacional que foi agarrado por mais de dez homens armados e vestidos à civil, os quais o espancaram na rua antes de o levarem para uma esquadra de polícia. Ali voltou a ser espancado: bateram-lhe com bastões de madeira nas solas dos pés, tiraram-lhe os calções e tentaram sufocá-lo com eles, submeteram-no a simulações de afogamento e eletrocutaram-no ao longo de horas.

Durante o interrogatório, foi repetidamente chamado por outro nome que não o seu. Finalmente, chegou um oficial ao local que disse aos demais agentes que tinham detido o homem errado. Mesmo assim, Jerryme Corre foi alvo de acusações.

Histórias como a de Darius e de Jerryme puseram a confiança pública na polícia a níveis muito baixos nas Filipinas. Um inquérito recente da Transparency International veio revelar que 69 por cento dos filipinos estão convictos que a polícia é corrupta. Porém, o Governo tem notavelmente falhado em travar os polícias corruptos.

Poucas pessoas, aliás, ousam apresentar queixas contra a polícia, bem cientes de que ficam em risco de represálias, perseguição e intimidação por parte dos agentes das forças policiais ou de bandidos contratados.

Rowelito Almeda, de 45 anos, foi detido, espancado e repetidamente eletrocutado ao longo de cinco dias num centro secreto de detenção em Laguna, onde os agentes têm vindo a usar uma espécie de “roda da tortura” para decidir qual o método a infligir aos detidos. Rowelito acabou por ser resgatado pela Comissão de Direitos Humanos – quando lhes denunciou a tortura a que estava a ser submetido, a polícia abordou um seu familiar e ofereceu-lhe dinheiro para o matar.

Teia de obstáculos às queixas e denúncias

Devido a esta cultura de crueldade e impunidade, muitas vítimas de tortura mantêm o seu sofrimento em segredo. Cinco das testemunhas ouvidas pela equipa de investigação da Amnistia Internacional para este relatório tinham apresentado queixas formais sobre o tratamento a que foram submetidas pela polícia mas acabaram por as retirar sob a pressão de ameaças e intimidação.

A larga maioria nem sequer teve coragem para apresentar qualquer queixa ou denúncia. Outros acham que as queixas não levam a lado nenhum. Desde que a Comissão de Direitos Humanos filipina foi criada, em 2001, foram recebidos por aquele organismo 457 relatórios de casos de tortura e outros maus-tratos. Nenhum desses casos conduziu a condenação em tribunal.

Aqueles que ousam apresentar queixa enfrentam uma teia de obstáculos burocráticos, onde as regras e procedimentos não são claros nem consistentes. As queixas são frequentemente arquivadas sem prosseguimento devido a argumentos técnicos.

Entre as várias recomendações feitas ao Governo filipino nesta matéria, a Amnistia Internacional propôs que esta enredada teia seja desfeita com a criação de uma comissão única, independente e eficaz para analisar as queixas e denúncias sobre as práticas policiais.

“Cinco anos, centenas de denúncias e nem uma condenação passados, é dolorosamente óbvio que a Lei Contra a Tortura não está a ser respeitada nem a ser feita cumprir”, aponta Salil Shetty. “É preciso que sejam encetados esforços concertados para erradicar a tortura e a cultura de impunidade que a perpetua. Isto tem de começar por uma prevenção eficaz e, onde esta falhe, através de investigações, processos sólidos de acusação e um mecanismo independente e simplificado que garanta que ninguém está acima da lei”, remata o secretário-geral da Amnistia Internacional.

 

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