10 Março 2016

Forças governamentais sul-sudanesas sufocaram deliberadamente mais de 60 rapazes e homens que detiveram dentro de um contentor marítimo, tendo posteriormente deitado os cadáveres num campo nos arredores da cidade de Leer, estado do Nilo Ocidental, confirmou a Amnistia Internacional com base numa nova missão no terreno.

No briefing South Sudan: ‘Their Voices Stopped’: Mass Killing in a Shipping Container in Leer” (Sudão do Sul: ‘As vozes deles calaram-se’: mortes maciças num contentor marítimo em Leer), os investigadores da organização de direitos humanos documentam as provas recolhidas quando visitaram recentemente o complexo da Igreja Católica de Comboni (no estado do Nilo Ocidental, ou Unity State) onde aquelas mortes ocorreram, em outubro de 2015. A equipa da Amnistia Internacional esteve também no local onde os corpos foram abandonados, a cerca de um quilómetro de distância de Leer. Os investigadores encontraram ainda muitos pedaços de esqueletos espalhados pelo chão.

“As detenções arbitrárias, tortura e mortes destes detidos ilustram o desrespeito absoluto que as autoridades do Sudão do Sul têm pelas leis da guerra. A privação ilegal da liberdade, a tortura e a sujeição deliberada a um enorme sofrimento, e à morte propositada, todos são crimes de guerra”, frisa a perita da Amnistia Internacional em situações de crise Lama Fakih.

Os investigadores entrevistaram mais de 42 testemunhas, incluindo 23 pessoas que declararam ter visto os rapazes e homens serem forçados a entrar num enorme contentor marítimo e, depois, os seus corpos a serem retirados do local ou a serem já largados em valas abertas.

Testemunhas descreveram que, entre 20 e 23 de outubro de 2015, soldados governamentais detiveram arbitrariamente dezenas de rapazes e homens na povoação de Luale e em Leer. Os detidos, todos com as mãos atadas atrás das costas, foram obrigados a entrar num ou mais contentores nos campos da igreja de Comboni.

Muitos entrevistados pela Amnistia Internacional recordam ter ouvido os gritos e o choro desesperado dos detidos, e o som dos murros que davam nas paredes do contentor que, foi descrito, não tinha quaisquer janelas nem nenhuma outra forma de ventilação. Estas testemunhas garantiram que responsáveis militares e também civis sabiam que os detidos se encontravam em perigo e a morrer, mas nada fizeram para lhes acudir.

Uma testemunha, por exemplo, contou ter visto o oficial que comandava aquela região na altura dar ordens aos soldados para abrirem o contentor e retirarem os corpos de quatro homens que tinham morrido, e depois o fecharem de novo deixando lá dentro todos quantos ainda estavam vivos.

Na manhã seguinte, apenas um dos homens no contentor sobrevivia. Uma testemunha relatou à Amnistia Internacional: “Conseguíamos ver as pessoas lá dentro e que estavam mortas… o que vimos foi trágico… o contentor estava cheio de gente. As pessoas tinham caído mortas umas sobre as outras ou no chão. Eram tantos”.

Após as mortes, soldados das forças governamentais carregaram dezenas de corpos num camião e abandonaram-nos em duas valas abertas em Kulier, na região de Juong, a aproximadamente um quilómetro para nordeste de Leer. Familiares dos detidos que se deslocaram àquela zona nos dias seguintes descrevem que os corpos, largados sobre a terra, tinham sido comidos por animais e se encontravam em decomposição.

Apesar de todas as provas de crimes de guerra cometidos, não foram tomadas nenhumas medidas para levar à justiça os responsáveis nem prestar compensações aos familiares dos mortos pela perda dos entes queridos.

“Dezenas de pessoas sofreram uma morte lenta e agonizante às mãos das forças governamentais, as quais as deviam proteger. Estas mortes extrajudiciais têm de ser investigadas e todos os responsáveis levados a julgamentos justos e sem condenação à pena de morte”, sublinha Lama Fakih.

A perita sustenta ainda que “para que se verifiquem acusações efetivas, a Comissão da União Africana tem de avançar imediatamente com a criação do tribunal penal hibrido que foi concebido ao abrigo dos acordos de paz de agosto de 2015”. “E têm de garantir que são prontamente abertas investigações por esse tribunal a crimes de guerra previstos na lei internacional, incluindo esta atrocidade”, remata.

Nem Governo nem tribunal

Ao fim de mais de 20 meses de negociações intermitentes, as partes envolvidas no conflito no Sudão do Sul acordaram finalmente, em agosto de 2015, nos termos de um acordo de paz. Esse acordo fornece um enquadramento para o fim das hostilidades e aborda uma série de assuntos em que se incluem a partilha de poder, matérias de segurança, assistência humanitária, acordos económicos, justiça e reconciliação e ainda um processo de desenvolvimento e aprovação de uma Constituição.

Apesar do acordo de paz e dos compromissos firmados por todas as partes envolvidas no conflito num cessar-fogo permanente, os combates continuavam no estado do Nilo Ocidental em meados de dezembro de 2015. O novo Governo de partilha de poder não foi ainda formado.

Os acordos de paz de agosto de 2015 dão as linhas mestras para a criação do Tribunal Hibrido do Sudão do Sul, pela Comissão da União Africana, com mandato para investigar e julgar genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos durante o conflito. Este tribunal não foi ainda formado.

As mortes dos 60 rapazes e homens em contentores marítimos em Leer foram reveladas pela primeira vez pelo Mecanismo de Monitorização dos Acordos de Cessar-fogo e Segurança, o órgão responsável pela avaliação da concretização do cessar-fogo permanente no Sudão do Sul. O relatório apresentado por este organismo recomendou que “alguma forma de comissão de inquérito seja criada para investigar de forma completa o incidente”.

Na altura em que aquelas mortes ocorreram, o complexo da Igreja Católica de Comboni estava sob o controlo das forças governamentais do Sudão do Sul.

Familiares dos mortos testemunharam à Amnistia Internacional que as vítimas eram tratadores de gado, comerciantes e estudantes, não combatentes.

 

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