4 Julho 2016

Relatos horríveis de violência sexual, mortes, tortura e perseguição religiosa recolhidos numa missão de investigação da Amnistia Internacional revelam o chocante leque de abusos que são cometidos contra refugiados e migrantes ao longo das rotas do tráfico humano para a Líbia e através de todo o país.

A organização de direitos humanos entrevistou mais de 90 refugiados e migrantes em centros de receção na Sicília e na Apúlia, os quais fizeram a viagem através do mar Mediterrâneo a partir da Líbia para o Sul de Itália nos meses recentes, e que foram alvo de uma multiplicidade de abusos por contrabandistas, traficantes de pessoas, grupos de crime organizado e grupos armados.

“Desde serem raptados, encarcerados em subterrâneos ao longo de meses e alvo de abusos sexuais por membros de grupos armados, a serem espancados, explorados ou alvejados por contrabandistas, traficantes ou grupos criminosos, os refugiados e migrantes descreveram em pormenores angustiantes os horrores que foram forçados a viver na Líbia”, conta a vice-diretora interina da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África, Magdalena Mughrabi. “Aquilo pelo qual estas pessoas passaram pinta uma imagem absolutamente horrível das condições das quais muitos daqueles que veem para a Europa estão a tentar escapar desesperadamente”, prossegue.

Centenas de milhares de refugiados e migrantes – maioritariamente oriundos da África subsariana – fazem a viagem até à Líbia em fuga de guerras, perseguição ou de pobreza extrema, frequentemente acalentados pela esperança de conseguirem instalar-se na Europa. A Organização Internacional para as Migrações (OIM) estima que se encontram atualmente mais de 264 000 migrantes e refugiados na Líbia. E, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR, UNHCR na sigla em inglês), são 37 500 os refugiados e requerentes de asilo registados em território líbio, metade deles sírios.

“Ninguém deveria estar sujeito a raptos, a tortura e a violação na Líbia quando está em busca de proteção. A comunidade internacional deveria estar a fazer todos os esforços para garantir que os refugiados não têm de fugir para a Líbia, para começar. A União Europeia, e todos os governos no mundo inteiro, têm de aumentar significativamente o número de vagas de reinstalação e visas humanitários para os refugiados vulneráveis que enfrentam dificuldades tão graves e têm poucas perspetivas nos países vizinhos para os quais começaram por fugir”, avalia Magdalena Mughrabi.

Apesar ter sido formado um Governo de união nacional no país, com o apoio das Nações Unidas, os combates continuam a assolar várias zonas da Líbia, incluindo Bengasi, Derna e Sírte.

“As autoridades líbias têm de tomar medidas urgentes para repor o Estado de direito e proteger os direitos de refugiados e migrantes. O Governo de união nacional, que goza do apoio internacional, assumiu compromissos de respeitar e fazer cumprir os direitos humanos – têm o dever de julgar aqueles que são responsáveis por estes crimes repugnantes”, insta ainda a vice-diretora interina da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África.

No meio de toda a anarquia e violência que continua a assolar o país, tem vindo a ser desenvolvido um negócio lucrativo de tráfico de pessoas ao longo das rotas desde o Sul da Líbia até à costa do Mediterrâneo, no Norte, de onde partem barcos rumo à Europa. Pelo menos 20 pessoas que os investigadores da Amnistia Internacional entrevistaram também reportaram a ocorrência de abusos sofridos às mãos de agentes da Guarda Costeira líbia e em centros de detenção de migrantes dentro do país.

A organização de direitos humanos ouviu refugiados e migrantes que descreveram abusos a acontecerem ao longo de toda a viagem, desde a chegada à Líbia até chegarem às zonas costeiras no Norte do país. Outros viveram vários anos na Líbia mas acabaram por decidir partir, em fuga da intimidação e abusos por grupos locais, por grupos armados e pela polícia.

A Amnistia Internacional documentou abusos cometidos por contrabandistas, traficantes e grupos armados na Líbia no relatório “‘Libya is full of cruelty’: Stories of abduction, sexual violence and abuse from migrants and refuges” (A Líbia está cheia de crueldade: histórias de raptos, violência sexual e abusos contadas por migrantes e refugiados), de maio de 2015. Os testemunhos mais recentes recolhidos na Líbia demonstram que, passado um ano, refugiados e migrantes continuam a ser submetidos a abusos horríveis.

Os horrores ao longo da viagem

A maioria das pessoas entrevistadas pela Amnistia Internacional contou serem vítimas de tráfico humano. Foram detidos por contrabandistas assim que entraram na Líbia ou vendidos a grupos criminosos. Muitas descreveram que foram espancadas, violadas, torturadas ou exploradas por aqueles que as mantiveram em cativas. Algumas testemunharam outras pessoas a serem mortas a tiro por contrabandistas, outras viram pessoas a serem abandonadas à morte por doença ou devido a maus-tratos.

“Quando [se chega] à Líbia, é aí que as dificuldades começam. É aí que nos começam a bater”, contou Ahmed, de 18 anos e oriundo da Somália, ao descrever a árdua viagem que fez através do deserto desde o Sudão até à Líbia em novembro de 2015. Este somali descreveu que os contrabandistas recusaram água como castigo e até dispararam tiros quando lhes foi pedido que dessem de beber a um grupo de homens sírios que viajam naquele grupo e que estavam sedentos.

“Um dos sírios morreu, era novo, não teria mais do que 21 anos. Depois disso deram-nos água, mas ainda outro sírio morreu… só tinha 19 anos”, contou Ahmed, acrescentando que os contrabandistas se apossaram de todos os pertences dos que morreram e não lhes permitiram tão pouco enterrar os corpos.

Outra história terrível foi contada por Paolos, de 24 anos, que partiu da Eritreia e atravessou o Sudão e o Chade, tendo chegado à Líbia em abril de 2016. Este eritreu contou que os contrabandistas abandonaram um homem deficiente físico no meio do deserto durante a viagem, quando se aproximavam da fronteira com o território líbio rumo à cidade de Sabha, no Sudoeste. “Vimo-los a atirarem com o homem para fora [da carrinha], no meio do deserto. Ele estava vivo. Era deficiente físico”, descreveu.

Violência sexual ao longo da rota do tráfico de pessoas

A Amnistia Internacional entrevistou 15 mulheres, tendo a maioria testemunhado que vivem num terror permanente de serem alvo de violência sexual ao longo da viagem para as zonas costeiras da Líbia. Muitas contaram que a violação é tão comum que tomam a pílula contracetiva antes de iniciarem a viagem para evitarem ficar grávidas dos violadores.

Profissionais médicos, psicólogos e assistentes sociais em três centros de receção que a Amnistia Internacional visitou durante esta missão, na Sicília e na Apúlia, confirmaram que as mulheres reportam elevados níveis de violência sexual sofrida durante a viagem. Funcionários do centro de receção de Bari, cidade portuária da Apúlia, também confirmaram que muitas mulheres refugiadas e migrantes começavam a tomar a pílula antes de encetarem a viagem com medo de serem violadas e engravidar.

A Amnistia Internacional recolheu 16 relatos de casos de violência sexual de sobreviventes e testemunhas nesta missão.

Estes testemunhos indicam que as mulheres foram alvo de ataques sexuais tanto pelos próprios contrabandistas como traficantes e por membros de grupos armados. Esses ataques ocorreram ao longo da rota de tráfico e quando as mulheres eram mantidas cativas em casas privadas ou em armazéns abandonados junto à costa onde embarcariam rumo à Europa.

Uma eritreia de 22 anos contou aos investigadores da organização de direitos humanos que testemunhou outras mulheres serem alvo de abusos sexuais, incluindo uma que foi vítima de violação em grupo porque um traficante a acusou erradamente de não ter pago a viagem. “A família dela não podia pagar outra vez. Levaram-na e foi violada por cinco líbios. Levaram-na a meio da noite, ninguém os confrontou, toda a gente tinha demasiado medo”, contou a testemunha.

Ramya, também da Eritreia, de 22 anos, relatou ter sido violada mais do que uma vez pelos traficantes que a mantiveram cativa num campo perto de Ajdabya, no Nordeste da Líbia, após ela ter entrado no país em março de 2015. “Os guardas bebiam e fumavam haxixe e depois vinham e escolhiam as mulheres que queriam e levavam-nos. Algumas de nós tentámos recusar-nos mas quando se tem uma arma apontada à cabeça não resta outra escolha para conseguir sobreviver. Fui violada duas vezes, por três homens… Não quis morrer”, lamentou.

E Antoinette, de 28 anos e oriunda dos Camarões, contou que os traficantes que a mantiveram em cativeiro em abril de 2016 “não se importam se és uma mulher ou uma mulher”. “Eles batiam-nos com paus e disparavam as armas para o ar. Talvez porque eu tinha um filho é que não me violaram, mas vi-os violarem mulheres grávidas e mulheres solteiras. Eu vi isto acontecer”.

Raptos, exploração e extorsão

Muitas das testemunhas entrevistadas pela Amnistia Internacional contaram que os contrabandistas as mantiveram em cativeiro com o objetivo de extorquir resgastes a familiares. Estas pessoas ficaram presas em condições deploráveis e frequentemente imundas, privadas de alimentos e de água, sendo constantemente agredidas, ameaçadas e insultados pelos captores.

Semre, eritreu de 22 anos, contou ter visto quatro pessoas – incluindo um rapaz de 14 anos e uma mulher de 22 – morrerem de doença e fome, durante o período em que esteve em cativeiro, enquanto os captores tentavam extorquir um resgate em troca da sua libertação. “Ninguém os levou ao hospital, tivemos de os enterrar nós mesmos”, recordou. O pai de Semre acabou por pagar o resgate exigido pelos traficantes, mas em vez de o libertarem venderam-no a um outro grupo criminoso.

Outros descreveram ter sido repetidamente espancados por quem os manteve em cativeiro e que aqueles que não tinham como pagar aos traficantes eram forçados a trabalhar sem nada receberem até saldarem a dívida.

Abdullah, eritreu de 23 anos, contou que os traficantes torturavam e agrediam as pessoas para as forçar a pagar, e especialmente para os pressionar a falarem com familiares e obter destes o dinheiro.

Outro eritreu, Saleh, de 20 anos, entrou em território líbio em outubro de 2015 e foi prontamente levado para um hangar de armazenamento em Bani Walid ocupado por traficantes. Foi ali mantido durante dez dias e testemunhou a morte de homem por eletrocussão, o qual não tinha como pagar aos traficantes. “Disseram-nos que quem quer que não conseguisse pagar teria o mesmo destino”, contou Saleh aos investigadores da Amnistia Internacional.

“Nós não percebíamos o que estava a acontecer… Disseram-nos que ficávamos ali até a nossa família pagar o que eles queriam. Os que mandavam obrigaram-nos a trabalhar sem nos pagarem nada, a limpar casas e noutros trabalhos. Não nos davam comida adequada. Até a água que nos davam era salgada. Não havia casas-de-banho em condições. Muitos de nós ficámos com problemas de pele. Os homens que nos guardavam fumavam haxixe e depois batiam-nos com as armas ou qualquer outra cosia que tivessem à mão: usavam ferros, pedras. Não tinham coração”, prosseguiu esta testemunha.

Abusos sexuais e perseguição religiosa por grupos armados

A ascensão de grupos armados poderosos nos anos recentes na Líbia, incluindo alguns que se declararam aliados do autoproclamado Estado Islâmico (EI) e que pretendem impor a sua interpretação da sharia (lei islâmica), colocou os cidadãos estrangeiros – e, em particular, os cristãos – em acrescido risco de abusos e potenciais crimes de guerra. A Amnistia Internacional entrevistou pessoas que disseram terem sido raptadas por membros do EI e mantidas em cativeiro durante vários meses.

Amal, eritreia de 21 anos, descreveu que um grupo de 17 pessoas com as quais ela viajava foi sequestrado por um grupo armado que creem faz parte do EI perto de Bengasi, quando seguiam em direção a Trípoli em julho de 2015. “Perguntaram ao traficante por que razão estava ele a ajudar cristãos. O homem fez de conta que não sabia que eramos cristãos e eles deixaram-no partir. Então, separaram-nos, cristãos para um lado e muçulmanos para o outro, e homens e mulheres separados também. Levaram os cristãos para Trípoli e mantiveram-nos presos em subterrâneos: não vimos o sol ao longo de nove meses. Éramos 11 mulheres da Eritreia”.

“Houve alturas em que não comemos durante três dias seguidos. Noutras vezes davam-nos apenas uma refeição por dia, metade de um pão”, contou ainda Amal. Esta mulher eritreia descreveu ainda que foram intimidadas a converterem-se ao Islão e agredidas com mangueiras e paus quando se recusaram a fazê-lo. “Houve ocasiões em que nos intimidaram com as armas, ou ameaçavam matar-nos com as facas”, recordou.

E quando as mulheres finalmente cediam e concordavam em converter-se, eram alvo de violência sexual. Os homens consideravam-nas suas “mulheres” e tratavam-nas como escravas sexuais. Amal contou ter sido violada por vários homens antes de ser entregue a um outro que também a violou.

Num outro caso, Adam, de 28 anos, oriundo da Etiópia e que vivia em Bengasi com a mulher, foi raptado em 2015 pelo EI apenas por ser cristão. “Mantiveram-me numa prisão durante um mês e meio. Um deles acabou por ficar com pena de mim depois de lhe ter dito que tinha família e ajudou-me a memorizar o Corão para que os outros me deixassem partir. Eles mataram muitas pessoas”. Adam acabou por conseguir fugir ao fim de sete meses em cativeiro.

O grupo armado jihadista autodesignado Estado Islâmico reivindicou responsabilidade pelas execuções sumárias de 49 cristãos coptas em três casos separados que ocorreram em fevereiro e em março de 2015.

“A anarquia e a proliferação de grupos armados rivais e de milícias aumentam os riscos com que refugiados e migrantes se confrontam na Líbia. O Governo de acordo nacional, apoiado internacionalmente, tem de pôr fim a estes abusos cometidos pelas suas próprias forças e milícias aliadas. E tem de garantir que ninguém, incluindo os membros de grupos armados, continua a cometer estes graves abusos, incluindo possíveis crimes de guerra, com impunidade”, insta a vice-diretora interina da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África.

Magdalena Mughrabi frisa que “a comunidade internacional tem também de prestar apoio ao Tribunal Penal Internacional [TPI], que continua a ter jurisdição sobre a Líbia, na investigação de crimes de guerra e crimes contra a humanidade”. “E todas as partes envolvidas no conflito têm de cooperar com a investigação do TPI”, exorta ainda a perita.

Além das persistentes ameaças que representam os grupos armados, os cidadãos estrangeiros na Líbia enfrentam também um racismo e xenofobia generalizados assim como um sentimento público que lhes permanece hostil. Muitos refugiados e migrantes entrevistados pela Amnistia Internacional reportaram ter sido atacados fisicamente, ameaçados com facas e armas e que lhes foi roubado tudo o que possuíam sob a ameaça de armas ou tendo sido espancados nas ruas por grupos criminosos.

Salvar vidas no mar

O Conselho Europeu aprovou, a 28 de junho passado, a decisão de expandir a missão naval anti tráfico humano no Mediterrâneo central – a Operação Sofia – por mais um ano, mantendo a função prioritária no combate ao tráfico humano e adicionando-lhe as tarefas de treino e partilha de informação com a Guarda Costeira da Líbia, assim como a monitorização da execução do embargo de armas ao país.

“A União Europeia [UE] devia centrar-se menos em manter refugiados e migrantes fora [da Europa] e mais em encontrar formas seguras e legais para auxiliar as pessoas que estão encurraladas na Líbia sem acesso a um refúgio seguro. A prioridade deveria ser salvar vidas, e tal significa alocar recursos suficientes onde eles são necessários para impedir mais tragédias”, sustenta Magdalena Mughrabi. “A UE deve encontrar soluções para impedir os abusos cometidos pelos contrabandistas, mas não pode tentar manter as pessoas sem saída num país onde as suas vidas e os seus direitos estão tão claramente em risco”, remata a perita da organização de direitos humanos.

Segundo a OIM, a maior parte dos cidadãos estrangeiros que residem na Líbia são oriundos do Níger, do Egito, do Chade, do Gana e do Sudão. A maioria dos que transitam através da Líbia e que fazem a travessia daí para a Itália por barco são da Eritreia, da Nigéria, da Gâmbia, da Somália e da Costa do Marfim.

O principal ponto de afluxo das pessoas oriundas da África Ocidental que entram na Líbia é a cidade de Sabha, no Sudoeste do país. Aqueles que entram em território líbia via Sudão e vindos da Somália, da Eritreia e da Etiópia afluem à baía de Kufra e daí seguem para Ajdabiya, na região Nordeste. A maior parte dos barcos que partem em direção à Europa saem da zona costeira Nordeste da Líbia. Antes das partidas, os estrangeiros são mantidos em casas e quintas até que mais se lhes juntem para fazerem a viagem.

Alguns dos abusos contra refugiados e migrantes na Líbia, documentados pela Amnistia Internacional, constituem tráfico humano. O tráfico de pessoas é um abuso de direitos humanos, assim como um crime na maioria dos sistemas penais nacionais, consagrado como a transferência de pessoas sob ameaça, o uso da força ou de coação como o rapto, a fraude e a indução propositada em erro.

A disrupção e formulação de acusações por tráfico humano, com vista a julgar os responsáveis, constituem uma obrigação dos países ao abrigo da legislação internacional de direitos humanos. Já o contrabando, em contraste, não envolve coerção; é tido como consensual. Apesar de o contrabando poder envolver a formulação de acusações criminais não é em si mesmo um abuso de direitos humanos.

 

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