20 Junho 2016

Ghias Aljundi fugiu da Síria para o Reino Unido há 18 anos. É um dos milhares de voluntários que desde há um ano ajudam os refugiados que chegam à Grécia após a dura e perigosa travessia do mar Mediterrâneo. O que ele nunca esperou foi, um dia, resgatar a própria família de um bote de borracha numa praia grega. No Dia Mundial do Refugiado, que se assinala esta segunda-feira, 20 de junho, Ghias Aljundi conta aqui como foi salvar os seus na ilha grega de Lesbos.

 

 

“Ao fazer o voo para Lesbos, na Grécia, nunca pensei que a minha família estaria também a chegar à ilha num pequeno bote insuflável. Foi uma grande coincidência.

Era um dia de dezembro e estava sol, um dia claro mas muito frio. Tive a sensação mais estranha da minha vida. Foi um momento muito difícil, que jamais desejei que acontecesse, nunca.

Ninguém queria partir da Síria. Nós somos de Tartus, uma cidade lindíssima na costa do Mediterrâneo [província de Latakia, no Noroeste do país]. Mas eu fui preso, estive na prisão quatro anos e fui torturado pelo trabalho de jornalismo e de direitos humanos que fazia. Por isso fugi para o Reino Unido em 1999.

O meu irmão Safi tinha uma loja de telemóveis em Tartus até ao final do ano passado, quando alguém disparou contra o local e tornou-se demasiado perigoso ficar lá. O meu sobrinho Mazin estava a tentar escapar-se ao recrutamento forçado para o Exército. Então fugiram para o Líbano e em poucos dias chegaram à Turquia.

Depois chegaram informações de que eles tinham pago a alguém para os levar até Lesbos. Fiz tudo o que pude para que não fizessem a perigosa viagem de barco – estava pronto a pedir dinheiro emprestado para que eles ficassem na Turquia. Mas eles decidiram que não queriam isso e, claro, eu não ia deixar de os ajudar.

Por isso, disse-lhes para não fazerem a travessia durante a noite porque se há algum acidente as probabilidades de se afogarem são muito maiores. Aconselhei-os a vestirem impermeáveis e a porem sacos de plásticos nos pés, porque a maior parte dos coletes salva-vidas não funcionam, não são verdadeiros.

E recomendei-lhes que não gritassem, porque isso assusta as crianças.

Juntos ao fim de 18 anos

Sabia exatamente onde é que eles iam chegar porque partilharam a localização pelo WhatsApp [aplicação móvel de mensagens por telemóvel]. A viagem desde a costa turca durou uma hora e 50 minutos. Enquanto os esperava eu estava como que num sítio diferente, numa bolha.

Escorreguei de costas monte abaixo até onde as ondas estavam a trazer o barco com o meu irmão dentro. O terreno era mau – cheguei lá abaixo com as mãos cheias de picos e em sangue.

O Safi foi a única pessoa que consegui reconhecer, e já não nos víamos há 18 anos. A minha nora, Nina, estava a chorar. Ela pensava que tinha perdido o bebé porque no barco, no pânico, algumas pessoas lhe tinham pisado a barriga. Os médicos meus colegas observaram-na e detetaram a batida cardíaca do bebé. Peguei em tantas crianças a saírem do bote… incluindo a minha sobrinha, Sirin, de três anos – não fazia ideia nenhuma que era ela, só soube depois.

Fomos registá-los no campo oficial, Moria, mas havia muita gente – pessoas a dormirem no exterior, e estava tanto frio. Teria de lhes arrendar eu mesmo um sítio para ficarem, pois não é permitido aos refugiados ficarem em hotéis ou apanharem táxis. Um homem grego acabou por lhes oferecer uma cama para passarem a noite.

Levei a minha família a jantar e voltei para a praia para o turno da noite. Eu continuava em choque e passei toda a noite a tirar pessoas de dentro dos barcos que chegavam à praia.

A minha família viajou depois para a Alemanha e têm agora residência lá. Estão a ir à escola para aprender a língua, e à espera de uma vaga numa creche. Os habitantes são muito simpáticos para eles. É incrivelmente positivo. A minha nora contou-me: ‘Agora sinto-me como um ser humano’. E, entretanto, já nasceu o bebé: um rapazinho muito saudável.

O mais duro de ser refugiado

O mais duro de ser refugiado é quando nos fazem sentir indesejados, como se viéssemos para lhes tirar a riqueza que têm. As pessoas não vêm para tirar os empregos a ninguém.

Uma vez resgatei um bebé de seis dias, que tremia de frio. Perguntei à mãe, muito jovem, por que é que ela tinha feito aquela viagem sozinha. ‘Fomos bombardeados por um avião e morreu muita gente. Por isso, peguei no meu bebé e meti-me num barco, porque assim conseguiria sobreviver’. O marido desta jovem mulher desapareceu quando ela estava grávida de três meses, e os outros familiares morreram. Por isso, que mais podia ela fazer?

Esta mulher é o meu ícone. Está na Suécia agora, ainda num campo, mas ela e o bebé estão em segurança. Sempre que lhe pergunto como estão as coisas, ela responde-me: ‘Feliz. Não há bombas-barris [barrel bombs, barris de aço que explodem com munições e fragmentos de metal no interior]”.

Muitas pessoas disseram-me que não ficariam nem um dia na Europa se houvesse um cessar-fogo na Síria. Fugir é a única forma de sobreviverem.

Ser bem-vindo faz toda a diferença

A situação na Grécia é muito pior agora do que quando a minha família cá chegou. Em março, Moria transformou-se num centro de detenção fechado por causa do novo acordo firmado entre a União Europeia e a Turquia, que ameaça enviar as pessoas de volta para a Turquia.

As pessoas estão também encurraladas por todo o lado na Grécia continental, em condições terríveis e com muito pouca ajuda. Quando recentemente me fui voluntariar em Atenas, vi bebés com apenas três dias a serem transferidos dos hospitais para tendas sob um calor horrível. O sentimento geral de desespero é bem real.

Voluntários e ativistas estão a fazer toda a diferença nesta crise. Cerca de 90% de nós pagamos as nossas próprias despesas. Nunca tive medo nem vi um refugiado ser agressivo. Todos eles sabem que estamos ali para os ajudar.

Quando as pessoas são bem acolhidas sentem-se esperançosas – e precisam de esperança mais do que qualquer outra coisa. Precisam de sentir-se tranquilas, que não estão a perturbar ninguém. Isso dá de novo às pessoas a sua humanidade e dignidade.

É por isso que soluções como a reinstalação são tão importantes. Não podemos permitir que as pessoas tenham de fazer arriscadíssimas viagens de barco com os filhos, à mercê de traficantes que abusam delas, ou que tenham de ficar décadas, sem saída, em sítios como o Quénia e o Paquistão.

Para todas elas, poder viajar em segurança e de forma legal para um país que as proteja significa que estão a dar um futuro aos seus filhos. Nenhum pai nem mãe quer que os filhos nasçam num limbo; querem que os filhos possam ir à escola, estejam seguros e em tranquilidade.

A proteção não é um presente que se dá aos refugiados. É um direito humano. E neste Dia Mundial do Refugiado, todos temos de dizer aos nossos governos que têm de trabalhar juntos para encontrarem soluções – e agora.”

(na foto: Ghias Aljundi, de colete amarelo, à esquerda)

 

A Amnistia Internacional exorta, em petição, os líderes políticos a mudarem as políticas de asilo nos seus países e, em particular, os governos europeus a garantirem que os refugiados encontram um destino seguro na Europa, incluindo Portugal, através dos mecanismos de reinstalação e outros que permitam a admissão legal e segura nos seus territórios de quem foge de conflitos e perseguição. Assine!

 

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