24 Novembro 2014

 

O percurso não foi fácil, encontrou resistências e hesitações, mas chegados a 1973 tudo começou a encaminhar-se para o momento perfeito de dar os passos para consagrar na legislação internacional o crime de tortura, e vincular os Estados a tudo fazerem para julgar os responsáveis por esta prática cruel nos seus territórios e em outros países. Este é o primeiro de uma série de artigos com que a Amnistia Internacional marca os 30 anos da aprovação da Convenção contra a Tortura nas Nações Unidas, cumpridos no próximo 10 de dezembro.

O acontecimento foi um marco legal que enviou uma mensagem bem clara a todos quantos violam os direitos humanos pelo mundo fora.

Oito anos após ter sido afastado do poder, em agosto de 1998, Augusto Pinochet, o antigo Presidente do Chile e um dos mais notórios ditadores mundiais, viajou para a Europa para receber tratamento médico. Ao chegar a Londres, membros da diáspora chilena – muitos deles sobreviventes das práticas de tortura sofridas durante o brutal regime de Pinochet – viram ali uma oportunidade de ouro para o antigo ditador ser investigado e julgado, depois de as autoridades chilenas se terem recusado sistematicamente a fazê-lo.

Os advogados deram início a uma batalha feroz, armados com a Convenção Internacional contra a Tortura – um tratado histórico no qual os Estados acordaram que aqueles que são suspeitos de cometer ou dar ordens de atos de tortura podem ser julgados pelos países signatários do documento por todo o mundo.

Nunca antes a Convenção fora usada com sucesso para levar a julgamento um antigo chefe de Estado suspeito de ter dado ordens para a execução de tortura ou cometido atos de tortura, e os resultados foram verdadeiramente espantosos. Um juiz espanhol emitiu um mandado internacional de detenção com o propósito de julgar Pinochet pela sua responsabilidade nas sistemáticas execuções, tortura e desaparecimentos forçados cometidos durante a sua governação.

Os horrores do Chile foram inspiradores

Foi um caso de justiça poética. Afinal, tinham sido os milhares de testemunhos de tortura que emergiram do Chile na época que se seguiu à tomada de poder pela força por Pinochet, em 1973, que inspiraram a criação da Convenção contra a Tortura. E uns 25 anos depois, era ele o primeiro a ser julgado com base no princípio de jurisdição universal do tratado.

Uma das pessoas por trás da criação do histórico tratado foi Sir Nigel Rodley, um advogado britânico e antigo conselheiro legal da Amnistia Internacional. “O caso Pinochet deu a muitas pessoas a sensação de retribuição. Foi um triunfo dos direitos humanos. Ele foi um ditador altivo e orgulhoso, que pensava ser intocável, e ali estava, detido ao longo de um ano num país que não o seu”, regozija-se o jurista.

Em 2000 foi permitido a Pinochet regressar ao Chile, livre, depois de uma muito controversa decisão no Reino Unido que invocou o débil estado de saúde do antigo ditador para o deixar partir. Mas o caso tinha já provado que a Convenção contra a Tortura constitui um poderoso instrumento legal na luta pela justiça.

Um tratado histórico

O ano de 1973 foi cheio de acontecimentos importantes na luta contra a tortura.

O golpe de Pinochet no Chile, com a vaga de detenções maciças, seguida de detenções, execuções, tortura e desaparecimentos forçados, soou como um grito de alerta de que a tortura não era um mal do passado mas sim algo que continuava bem vivo.

Em parte em resposta àqueles horrores, a Amnistia Internacional lançou a primeira campanha global da organização com o objetivo de acabar com esta prática cruel.

No mesmo ano, a Amnistia Internacional publicou um relatório detalhadíssimo, de 225 páginas, que registou e analisou pela primeira vez na história a extensão do recurso a espancamentos, eletrocussão, posturas de desgaste físico e outras formas de tortura por parte de governos por todo o mundo para castigar dissidentes ou visando extrair confissões.

Isto deu o pontapé de saída a uma campanha internacional para pressionar as autoridades a porem fim à brutal prática, tanto nos seus territórios como em outros países. E ativistas encheram as ruas a recolher assinaturas para petições e denunciaram perante as câmaras de televisão do mundo inteiro os abusos que eram ignorados por tanta gente. Ao mesmo tempo, advogados reuniam-se em busca de ferramentas legais que permitissem pôr fim ao sofrimento de centenas de milhares de pessoas.

Numa conferência internacional de juristas organizada em dezembro de 1973 pela Amnistia Internacional em Paris (na fotografia), um advogado sugeriu que uma forma de combate à tortura seria a existência de um tratado internacional robusto e vinculativo que proibisse a prática.

A tortura era já ilegal em muito países e o surgimento de um consenso internacional significava que se tornaria proibida globalmente e constituiria um crime ao abrigo da lei internacional.

A Convenção, porém, iria mais longe mesmo, com a garantia de que os Estados que ratificassem o tratado ficavam legalmente obrigados a consagrar especificamente o crime de tortura nas suas legislações, a investigar todas as denúncias de forma célere e imparcial, a punir os que a praticam, a banir “provas” obtidas sob tortura em todas as instâncias judiciais, e a absterem-se de enviar pessoas contra a sua vontade para locais onde fiquem em risco de sofrer tortura e outros maus-tratos.

Outra obrigação chave seria a de os Estados garantirem que suspeitos de prática ou de ordem para ser cometida tortura podiam ser julgados em qualquer país que tenha ratificado a Convenção.

O momento parecia perfeito. A Assembleia Geral das Nações Unidas já discutia há algum tempo a necessidade de aprovar uma resolução sobre a tortura. Alguns anos mais tarde, pelos finais de 1977, o Governo sueco tomou a iniciativa de propor a criação de um tratado internacional. Negociações intensas entraram em curso nas Nações Unidas em Nova Iorque e no seio de governos por todo o mundo.

Mas veio a revelar-se extremamente difícil chegar a acordo nas cláusulas que obrigavam os Estados a investigar e julgar os responsáveis por cometer ou darem ordens de práticas de tortura, mesmo em países que não o do visado.

“Houve forte resistência manifestada por muitos países neste aspeto. A França não gostou da ideia de início, também não agradou aos holandeses, que presidiam ao grupo de trabalho, e muitas outras nações mais não gostaram, mas aos poucos vários países começaram a mudar de opinião e abraçaram a ideia. O princípio essencial era o de que não poderia existir nenhum refúgio seguro no mundo para os torturadores”, explica Sir Nigel Rodley.

Depois de muitas e longas discussões, a 10 de dezembro de 1984, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes (UNCAT). Com 33 artigos, o tratado define o que é a tortura e como a prática deve ser criminalizada, investigada e julgada. E elenca expressa e claramente uma lista de obrigações que vincula os Estados a agirem contra a tortura cometida tanto nos seus territórios como em países estrangeiros.

Um novo caminho para a justiça

Apesar de Pinochet ter acabado por conseguir escapar-se à concretização de justiça, dezenas de outros suspeitos foram julgados sob a premissa da jurisdição universal consagrada na Convenção contra a Tortura.

Sir Nigel Rodley acredita que o documento funciona agora como um poderoso dissuasor.

“Esta Convenção significa que existe um novo caminho para a justiça; e que os líderes mundiais responsáveis por práticas de tortura vão pensar duas vezes antes de viajarem para países onde possam ser detidos. O tratado trouxe um certo grau de incerteza e receio aos líderes de elevada responsabilidade política e poderá mesmo ter inibido a tortura em determinada extensão – e isto é muito bom”, prossegue o jurista britânico.

Este antigo conselheiro legal da Amnistia Internacional frisa que apesar de ainda haver muito trabalho por fazer para pôr fim à tortura, muito mudou entretanto desde a aprovação da Convenção.

“Hoje em dia é universalmente aceite que a tortura está proibida pela legislação internacional. Em última análise, não é a comunidade internacional que pode parar a tortura, claro, apenas os países o podem fazer. E parte do problema que persiste é que a maior parte das práticas de tortura que continuam a registar-se são cometidas contra criminosos comuns com os quais ninguém se preocupa, e é feita por agentes da polícia incompetentes, que são mal pagos e vivem sob a pressão de manterem as ruas seguras – e, enquanto estes não forem julgados, a tortura continuará a acontecer”, defende Sir Nigel Rodley.

Mas o êxito da Convenção não se limita aos julgamentos de suspeitos de tortura. Ao longo dos anos, mais e mais países têm vindo a criminalizar a prática, consagraram garantias legais como o acesso célere de detidos a advogados e familiares, a proibição do regime de detenção em incomunicabilidade e aprovaram as visitas às prisões de observadores independentes.

A luta continua

É um facto que a tortura continua a existir e a ser praticada sistematicamente em muitas partes do mundo – e isto significa que ainda há muito trabalho por fazer.

Com 30 anos passados sobre a entrada em vigor da Convenção, a Amnistia Internacional continua a liderar a luta contra a tortura. Apesar dos persistentes desafios, a organização de direitos humanos continua a denunciar, a chamar pelos nomes e a envergonhar os responsáveis pela tortura e os países onde a prática é corrente. Tal integra os continuados esforços da Amnistia Internacional para acabar com a tortura de uma vez por todas.

 

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