3 Julho 2014

A vaga de detenções arbitrárias e chocantes casos de tortura e mortes ocorridas sob custódia policial documentados pela Amnistia Internacional constituem provas muito fortes da acentuada deterioração de direitos humanos no Egito ao longo deste ano, desde a deposição de Mohamed Morsi da presidência do país.

Segundo as estimativas oficiais publicadas pela agência noticiosa norte-americana Associated Press em março passado, pelo menos 16 mil pessoas foram detidas nestes últimos 12 meses na vasta ofensiva das autoridades egípcias contra os apoiantes de Morsi e outros grupos e ativistas que expressaram dissidência. Já na WikiThawra, projeto de base de dados gerido pelo Centro Egípcio para os Direitos Económicos e Sociais, está registado que pelo menos 80 pessoas morreram sob custódia policial no último ano e mais de 40 mil foram detidas ou acusadas entre 3 de julho de 2013 e meados de maio de 2014.

Relatos de práticas de tortura e desaparecimentos forçados em centros de detenção tanto policiais como militares são também frequentes.

“As forças de segurança públicas egípcias – que agora se chamam Agência de Segurança Nacional – estão de volta e a operar a todo o gás, lançando mão dos mesmos métodos de tortura e outros maus tratos que foram usados nos tempos mais negros da era de Hosni Mubarak [ex-Presidente do país, entre 1981 e 2011, afastado no pico da revolta da Primavera Árabe]”, sustenta a vice-diretora do Programa Médio Oriente e Norte de África da Amnistia Internacional, Hassiba Hadj Sahraoui.

A perita frisa que “apesar das repetidas promessas por anteriores e atuais líderes em respeitarem o Estado de direito, ao longo do último ano continuaram a registar-se flagrantes violações de direitos humanos a um ritmo alarmante, com as forças de segurança a gozarem efetivamente de carta-branca para cometerem violações das liberdades fundamentais com total impunidade”.

Práticas de tortura e outros maus tratos

A Amnistia Internacional recolheu provas irrefutáveis de que a tortura é uma prática rotineira nas esquadras de polícia e centros de detenção não oficiais, com membros da Irmandade Muçulmana (de Morsi) e os seus apoiantes a serem alvos preferenciais. A tortura é praticada tanto pela polícia egípcia como pelas forças militares em instalações que pertencem à Agência de Segurança Nacional, em muitos casos com o propósito de forçar confissões e/ou quebrar os detidos até que denunciem outras pessoas.

De entre os métodos de tortura utilizados estão várias técnicas que eram usadas pelas forças de segurança durante a era de Mubarak: eletrocussão, violação, algemar e pendurar detidos no topo de portas e, ainda, o chamado “grelhador”, em que o detido é preso pelos pulsos e tornozelos a uma barra de ferro que é colocada sobre duas cadeiras até o indivíduo perder ficar com as pernas dormentes e, então, é sujeito a choques elétricos.

Num dos mais chocantes casos testemunhados à Amnistia Internacional, o estudante M.R.S., de 23 anos, detido em fevereiro deste ano no Cairo, esteve 47 dias detido, nos quais foi sucessivamente torturado e violado durante os interrogatórios. M.R.S. não está detido atualmente mas o seu processo judicial permanece aberto.

“Rasgaram-me a camisa, vendaram-me e algemaram-me as mãos atrás das costas. Depois espancaram-me com bastões por todo o corpo, com mais força no peito, nas costas e na cara, e prenderam-me fios elétricos aos dedos mindinhos e eletrocutaram-me umas quatro ou cinco vezes”, descreveu aquele estudante.

M.R.S. relatou ainda as formas brutais e horríveis em que foi violado e submetido a todo o tipo de abusos sexuais. “O agente pegou-me nos testículos e começou a apertar. Eu gritei consumido pela dor e dobrei as pernas para proteger os testículos e ele enfiou os dedos no meu ânus. Ele tinha qualquer coisa plástica nos dedos e fez aquilo umas cinco vezes”. O estudante contou ainda que lhe bateram repetidamente com um pau no pénis. E depois daquelas agressões violaram-no várias vezes e, a seguir, obrigaram-no a cantar a “Teslam el Ayadi” (ou “Abençoadas as tuas mãos”, uma cantiga de apoio ao exército egípcio).

Num outro caso, Mahmoud Mohamed Ahmed Hussein, estudante de 18 anos, foi detido quando se dirigia para casa, por volta do meio-dia, no bairro de El Mareg, na capital, no dia do terceiro aniversário da revolta de 2011. O jovem crê que foi abordado porque tinha vestida uma t-shirt com o símbolo da “Revolução de 25 de Janeiro” e um cachecol com o slogan da campanha “Um país sem tortura”. Levaram-no para a prisão, onde foi vendado e espancado durante horas e eletrocutado, incluindo nos testículos, forçado em interrogatório por agentes da Agência de Segurança Nacional a “confessar” que tinha explosivos e que fazia parte da Irmandade Muçulmana. Mahmoud Mohamed Ahmed Hussein permanece detido.

“Todos os dias nos chegam relatos chocantes de tortura enquanto as autoridades continuam a negar perentoriamente que estejam a cometer quaisquer abusos. Aliás, chegam mesmo a descrever descaradamente as prisões egípcias como hotéis”, explica Hassiba Hadj Sahraoui. “Se as autoridades egípcias querem guardar ainda alguma credibilidade, estas práticas horríveis têm de parar imediatamente”, defende a perita.

Mortes sob custódia policial

“A morte em 2010 de Khaled Said, um homem de Alexandria, às mãos da polícia foi uma das forças motoras da revolta no Egito. É trágico que quatro anos após a sua morte continuem a ocorrer mortes de detido sob custódia policial a um ritmo alarmante”, frisa a subdiretora do programa Médio Oriente e Norte de África da Amnistia Internacional.

Ahmed Ibrahim é um dos quatro detidos que morreram na esquadra de polícia de Mattereya desde abril passado. Tinha-lhe sido aprovada uma libertação antecipada depois de ter cumprido já a maior parte da sentença de três anos de prisão a que tinha sido condenado e foi transferido do centro de detenção para a esquadra para ser preparada a sua libertação.

No tempo que ali esteve, Ahmed Ibrahim queixou-se várias vezes das deficientes condições de detenção em Mattereya, relatou aos polícias que tinha dificuldades em respirar devido a fraca ventilação da sobrepovoada cela em que o tinham posto na esquadra. Recusaram-lhe ser visto por um médico.

Num telefonema com o pai, pela 1h00 da madrugada de 15 de junho passado, Ahmed Ibrahim, rogou por ajuda: “Estou a morrer, pai”, disse. O pai tentou enviar-lhe uma ambulância, mas acabou por descobrir que tal pedido teria de ser feito pela esquadra para que os paramédicos conseguissem chegar ao filho. Quando o pai de Ahmed Ibrahim finalmente chegou à esquadra de Mattereya para se informar do estado do filho, já de manhã, disseram-lhe que ele morrera.

Ao receber o corpo, o pai de Ahmed Ibrahim constatou que o filho tinha nódoas negras em várias zonas do torso e cortes no pescoço, sinais que sugeriam que fora submetido a tortura. O relatório dos exames iniciais de autópsia a que a Amnistia Internacional teve acesso reporta a existência daquelas nódoas negras e cortes no cadáver. Os médicos forenses disseram à organização de direitos humanos que a razão de morte permanece por esclarecer.

Detenções arbitrárias

A Amnistia Internacional ouviu os testemunhos de dezenas de pessoas que estiveram detidas e de familiares de detidos que foram arbitrariamente encarcerados e ilegitimamente mantidos na prisão totalmente privados dos seus direitos. Em muitos dos casos investigados, as pessoas foram apanhadas em rusgas de rua ou detidas pelas forças de segurança que entraram à força nas suas casas.

Muitos foram espancados assim que os detiveram, mantidos em detenção por longos períodos sem lhes ser deduzida acusação, sem lhes ser dada a oportunidade de contestarem a detenção ilegítima em tribunal ou perante um procurador nem tão pouco sendo-lhes dadas informações sobre a razão pela qual foram detidos. Algumas destas pessoas estiveram na prisão durante quase um ano sem serem acusados de nada nem levadas a julgamento.

Um detido entrevistado pela Amnistia Internacional relatou ter estado na prisão de Al-Azouly, no campo militar Al Galaa, durante 96 dias, depois de as forças de segurança terem forçado entrada na sua casa e o levarem. Não lhe foi permitido contactar com advogado nem informar os familiares sobre onde se encontrava. A experiência não lhe era estranha: estivera 11 anos detido arbitrária e administrativamente durante o regime de Hosni Mubarak – mas “ao contrário das forças de Mubarak, que pelo menos sabiam quem é que tinham prendido, agora as pessoas são detidas ao acaso”, contou à Amnistia Internacional.

Hatem Mohie Eldin, estudante de 17 anos, de Alexandria, foi detido dessa forma, ao acaso, a 27 de maio naquela cidade, quando regressava a casa depois da escola. As forças de segurança espancaram-no durante cinco dias num local que ele não é capaz de identificar. Não o deixaram contactar com a família nem advogado e nunca foi processado de forma a ser apresentado quer a um procurador quer perante um tribunal durante todo aquele período. Acabou por ser libertado a 1 de junho, depois de as forças de segurança terem concluído que não tinha tido nenhum envolvimento nos motins nem nas vagas de violência, explicou Hatem Mohie Eldin.

Em alguns dos casos examinados, as forças de segurança detiveram familiares ou amigos da pessoa que procuravam quando não a conseguiam encontrar e forjavam acusações contra eles. Os irmãos Salah e Adel, por exemplo, foram detidos e espancados em agosto de 2013 quando a polícia foi a casa deles para deter um outro irmão e este não estava presente.

Julgamentos injustos

O sistema de justiça criminal no Egito sofreu graves recuos no último ano, com a emissão de uma série de sentenças politicamente motivadas. Condenações à pena de morte, proferidas às centenas, na sequência de julgamentos profundamente injustos contra suspeitos acusados dos atos de violência que ocorreram em agosto passado expuseram as falhas profundas no sistema penal do país.

Em muitos dos casos, os arguidos não foram sequer levados a tribunal para estarem presentes durante os seus julgamentos e os advogados foram repetidamente barrados de apresentarem as suas defesas e até mesmo de interrogarem testemunhas.

Os tribunais condenaram rapazes menores de 18 anos à pena capital, numa flagrante violação das obrigações do Egito ao abrigo das leis do próprio país assim como da legislação internacional, em particular da Convenção dos Direitos da Criança.

Noutros processos, arguidos foram condenados à morte após apenas uma audiência de julgamento e sem que os seus advogados tivessem a oportunidade de exporem a sua defesa ou questionarem testemunhas.

Segundo a informação recolhida pela Amnistia Internacional, desde janeiro de 2014, os tribunais egípcios proferiram a pena de morte a 1.247 homens – sentenças que são obrigatoriamente submetidas à avaliação religiosa do grande mufti (mais alto representante islâmico junto do Estado egípcio) –, acabando por confirmar 247. Todas estas condenações à pena capital foram proferidas no seguimento de julgamentos profundamente injustos.

Advogados de defesa reportaram à Amnistia Internacional ocasiões em que não lhes foi permitido seguirem as investigações pelos procuradores e declararam que foram usadas mesmo “confissões” extraídas sob tortura, as quais integraram os processos judiciais.

“O sistema de justiça criminal do Egito mostrou que não é capaz, ou que não há vontade, de fazer justiça, com consequências desastrosas”, defende Hassiba Hadj Sahraoui. E prossegue: “O Egito está a falhar a todos os níveis no que toca a direitos humanos. Está nas mãos do novo Governo, liderado pelo Presidente, Abdel Fattah al-Sisi virar esta maré, lançando investigações independentes e imparciais a todas as alegações de violações dos direitos humanos e, com isso, enviar uma mensagem bem clara de que desrespeitar as liberdades e garantias fundamentais das pessoas não será tolerado e não continuará a ficar impune”.

 

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