3 Novembro 2015

 

A reinstalação é uma corda de salva-vidas para alguns dos mais vulneráveis refugiados do mundo: uma jovem família oriunda da Síria conta a enorme diferença na vida deles ao mudarem-se para a Noruega. E partilha o que mais desejam, numa conversa com Ina Strøm, da Amnistia Internacional Noruega.

“As autoridades norueguesas fizeram propositadamente a chamada no dia do primeiro aniversário do Kahraman”, recorda Sherihan, música, de 29 anos. “Disseram-nos: ‘Temos um presente para vocês. Podem vir para a Noruega!’ E nós não sabíamos nada da Noruega, mas ficámos tão felizes”, prossegue esta mulher oriunda da Síria.

Agora a morarem num apartamento luminoso, num modesto prédio de 1950 numa zona tranquila de Oslo, a capital norueguesa, Sherihan e o marido brincam um com o outro. “É assim que eu vejo a Noruega. Primeiro vêm as crianças, depois as mulheres, depois o cão, e só no fim é que vem o homem!”, diz Hennan, artista, de 31 anos. Riem-se os dois.

Nacos de pão manchados de sangue

Esta cena feliz decorre a milhares de quilómetros do que o casal deixou para trás em Alepo, na Síria. “Esses foram dias muito maus. Vi um homem ser morto por atiradores furtivos quando vinha da padaria. Ele trazia um pão nas mãos erguidas acima da cabeça para mostrar que não estava armado. À volta do corpo ficaram espalhados nacos de pão manchados de sangue. E uma mulher foi apanhar os bocados de pão, provavelmente tinha filhos com fome em casa”, conta Hennan.

A maior parte dos desenhos que fez nessa altura “são tristes”, nota o artista sírio. “Porque são sobre as nossas experiências da guerra”.

Mal sobrevivendo na Síria

“A nossa vida era simples em Alepo. Íamos trabalhar, fazia o jantar e passávamos tempo com a família e amigos. Eu tocava flauta numa academia de música. Tinha muitos sonhos. Estávamos a poupar para comprar um bom carro e uma casa grande: uma casa para criar filhos. Sabe como é, aquilo que toda a gente deseja”, explica Sherihan.

Hennan lembra por seu lado que gostava muito de estar em casa, “à conversa sobre política com amigos, ou a ler”. “Tinha uns 700 livros. Alguns eram ilegais, sobre política ou religião, ou sobre curdo [língua minoritária banida nas escolas sírias, assim como nos locais de trabalho e nos livros]”. O artista conta que o apartamento onde o casal vivia em Alepo “ficava mesmo na fronteira entre áreas dominadas pelas forças governamentais e as da oposição”. “Um dia alguém matou o nosso vizinho, apenas porque pensaram que ele apoiava [o Presidente sírio, Bashar al-] Assad”.

Acabaram por deixar a cidade e ir para o campo. “Era frio e não havia muito para comer, nem água canalizada nem eletricidade. Eu estava grávida nessa altura. Não conseguíamos pensar no futuro, apenas podíamos sobreviver”, frisa Sherihan. O filho do casal, Kahraman, nasceu a 24 de junho de 2013.

Tempos difíceis na Turquia

“Quando Kahraman tinha apenas alguns meses, notámos que ele não respondia normalmente aos nossos estímulos. Um médico disse-me que ele era cego e que seria cego toda a vida. Fiquei devastada”, recorda a música.

Decidiram então regressar a Alepo, para obter uma segunda opinião médica. “Demorámos 13 horas e tivemos de atravessar uma rua onde os atiradores furtivos tinham alvejado e morto muitas pessoas. Segurei o Kahraman bem junto ao meu peito e desatei a correr”, prossegue Sherihan.

O médico que consultaram deu-lhes alguma esperança, mas alertou que teriam de levar o bebé a Alepo para consultas regulares. “Foi aí que decidimos partir para a Turquia”.

“A vida na Turquia era ainda mais difícil do que na Síria. Ficámos nove meses num pequeno apartamento junto com outras três famílias. O Hennan trabalhava o dia inteiro por praticamente dinheiro nenhum. E não conseguíamos dar a Kahraman a assistência médica de que ele precisava. Foi a pior fase da minha vida”, lamenta.

Depois de se registarem no Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR, UNHCR na sigla em inglês), a família foi informada que cumpriam os requisitos necessários para a reinstalação. “E um dia disseram-nos que o Diretório Norueguês para as Migrações nos queria entrevistar”, relata Sherihan.

Finalmente a salvo

Dois meses mais tarde, a família estava finalmente a caminho da segurança. “Viajámos com poucas coisas, levando apenas o que possuíamos de mais precioso: o computador portátil com as fotografias do trabalho de Hennan e da nossa vida, e a minha flauta”, recorda Sherihan. “E lembro-me claramente do momento em que aterrámos em Oslo, a 23 de setembro de 2014. Foi um momento muito importante: estávamos finalmente a salvo!”, conta emocionada.

“A Noruega é muito diferente da Síria. É ainda mais frio do que pensávamos. Mas quando encontrámos literatura curda na biblioteca, sentimos que estávamos num sítio onde a liberdade é uma realidade”, sublinha Hennan.

Uma vida normal

O jovem artista mostra algumas fotografias da mulher a tocar flauta durante o casamento de ambos, em 2010, em que ela está de vestido branco com detalhes em renda. “Tenho saudades da pessoa que era antes da guerra, da minha vida antiga”, diz Sherihan.

Mas agora estão a adaptar-se. Ambos falam já norueguês fluentemente. Kahraman, atualmente com dois anos, revela-se por vezes ansioso com as outras crianças no jardim-de-infância, devido aos problemas de visão. Mas pergunta muitas vezes pelo novo amigo, Mina, e move-se pelo apartamento da família com enorme rapidez.

“Os nossos amigos noruegueses nunca nos perguntam porque não vamos à mesquita, nem fazem quaisquer comentários se bebemos uma ou duas cervejas. Nunca nos julgam. Mas são obcecados com os capacetes de bicicleta! Um deles está sempre a zangar-se comigo porque eu não uso um”, conta Sherihan, a sorrir.

O casal deixou amigos e familiares na Síria. “A minha única esperança é que a guerra acabe depressa. Até acabar, as pessoas vão ver-se forçadas a fugir. A comunidade global tem de fazer mais para parar esta guerra”, defende Hennan. A mulher continua: “Todos os países deviam acolher refugiados e os números devem ser equilibrados e justos”.

“Se fosse fazer um desejo seria o de ter trabalho, independência, e estar com quem amo. Desejo uma vida normal – é só isso”, explica ainda Sherihan.

Mais de quatro milhões de refugiados sírios estão acolhidos em apenas cinco países na região. A Amnistia Internacional insta a que dez por cento destas pessoas – ou seja, 400 mil refugiados –, que o ACNUR regista como sendo as mais vulneráveis, sejam reinstaladas nos países mais ricos do mundo até ao final de 2016. A organização de direitos humanos estima ainda que 1,45 milhão de pessoas no mundo inteiro precisam de ser reinstaladas até ao final de 2017.

 

A Amnistia Internacional tem em curso, desde 20 de março de 2014, a campanha “SOS Europa, as pessoas acima das fronteiras“, iniciativa de pressão global para que a União Europeia mude as políticas de migração e asilo, no sentido de minorar os riscos de vida que migrantes, refugiados e candidatos a asilo correm para chegar à Europa, e garantir que estas pessoas são tratadas com dignidade à chegada às fronteiras europeias. Dê força a esta mensagem: assine a petição.

 

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