22 Outubro 2015

Mulheres, homens e crianças rohingya em fuga da perseguição em Myanmar/Birmânia por via marítima no início de 2015 foram mortos ou brutalmente espancados, apanhados nas redes de tráfico humano, ameaçados caso as famílias não pagassem resgastes e mantidos em condições desumanas e infernais, revela relatório da Amnistia Internacional, ao aproximar-se o pico de nova “época de navegação” no Sudeste Asiático.

 

 

  • Mulheres, homens e crianças são traficados em condições infernais, espancados ou mortos sob exigência de resgates

  • Teme-se que centenas mais de refugiados e migrantes, talvez mesmo milhares, do que foi inicialmente estimado, tenham morrido no mar

  • Nova crise com o aproximar da “época de navegação” ganha dimensão na baía de Bengala e no mar de Andamão

“Deadly journeys: The refugee and trafficking crisis in Southeast Asia” (Viagens mortais: refugiados e a crise de tráfico humano no Sudeste Asiático), emitido esta quarta-feira, 21 de outubro, assenta em entrevistas com mais de 100 refugiados rohingya (minoria muçulmana na Birmânia), na maioria vítimas de tráfico humano, e muitos deles crianças, que conseguiram chegar à Indonésia após fugirem da Birmânia ou do Bangladesh através do mar de Andamão.

Terminadas as monções e já com a nova “época de navegação” em curso, muitos mais milhares de pessoas estarão a entrar em barcos para fazer a travessia. A Amnistia Internacional insta assim os governos da região a reforçarem com urgência as suas respostas à crise.

“Os abusos físicos diários que os rohingya enfrentam quando ficam encurralados em barcos na baía de Bengala e no mar de Andamão é quase demasiado horrível para os expressar em palavras. Estas pessoas fugiram da Birmânia, mas acabaram a trocar um pesadelo por outro pesadelo”, avalia a investigadora da Amnistia Internacional Anna Shea, perita em questões de refugiados. “A verdade chocante é que aqueles com quem falámos são os ‘sortudos’ que conseguiram chegar a terra – muitos, inúmeros, outros morreram no mar ou foram traficados para trabalhos forçados. Os governos têm de fazer mais para evitar que esta tragédia humana se repita”, sublinha.

Os acontecimentos horríveis que se deram em maio de 2015 – desencadeados pela operação da Tailândia contra o tráfico humano, e o subsequente abandono de pessoas à sua sorte no mar pelos traficantes – deixaram milhares de refugiados e migrantes à deriva ao longo de semanas, desesperados, sem comida, nem água, nem assistência médica.

As Nações Unidas estimam que pelo menos 370 pessoas morreram nas águas do Sudeste Asiático entre janeiro e junho de 2015, mas a Amnistia Internacional acredita que o número verdadeiro é muito mais alto.

Testemunhas oculares entrevistadas pela Amnistia Internacional descrevem dezenas de grandes barcos repletos de refugiados e migrantes em circunstâncias similares, mas apenas cinco barcos alcançaram a costa, na Indonésia e na Malásia, de acordo com fontes das Nações Unidas. Centenas – senão milhares – de pessoas continuam sem rasto e podem ter morrido durante as suas viagens ou vendidas para trabalhos forçados.

Mortes e espancamentos para extorsão de dinheiro

Muitos rohingya contaram ter visto tripulantes dos barcos a matarem pessoas quando os familiares desses refugiados e migrantes não pagaram o dinheiro que lhes era exigido. Algumas foram alvejadas a tiro por traficantes a bordo dos barcos, outras atiradas borda fora e deixadas no mar para se afogarem. Outras ainda morreram por falta de comida e de água ou de doença.

Os investigadores da Amnistia Internacional ouviram a muitos refugiados descrições de como foram mantidos em barcos enormes durante meses a fio e brutalmente espancados pelos traficantes que contactavam seus familiares exigindo resgates. Uma rapariga rohingya, de 15 anos, relatou que os tripulantes do barco em que se encontrava telefonaram para o pai dela, no Bangladesh, e o fizeram ouvir os seus gritos enquanto a espancavam, exigindo que pagasse um resgate de cerca de 1.700 dólares (perto de 1.500 euros).

Praticamente todas as mulheres, homens e crianças rohingya asseveraram à Amnistia Internacional terem sido espancadas ou que testemunharam outros a serem vítimas de graves abusos físicos. Houve pessoas espancadas com bastões de metal e de plásticos – em alguns casos ao longo de horas – apenas por pedirem comida aos tripulantes dos barcos, por mudarem de sítio ou por pedirem para ir aos sanitários. Muitas ficaram com cicatrizes físicas ou psicológicas duradouras devido à violência a que foram sujeitas.

Estes espancamentos brutais eram feitos de forma sistemática, numa rotina arrepiante. Um rapaz rohingya de 15 anos contou aos investigadores da Amnistia Internacional: “Pela manhã batiam-nos três vezes. À tarde batiam-nos três vezes. E à noite batiam-nos nove vezes”.

Perseguidos no país natal

O desespero dos muçulmanos rohingya tem origem nos anos de perseguição e discriminação de que são alvo na Birmânia, onde esta população vê ser-lhe efetivamente negada a cidadania pelas leis do país. Vagas de violência contra os rohingya, a mais recente tendo eclodido em 2012, têm forçado dezenas de milhares de pessoas a mudarem-se para campos sobrepovoados onde vivem em condições desesperantes.

Algumas pessoas relataram à Amnistia Internacional terem sido raptadas por traficantes na Birmânia ou no Bangladesh, outros que lhes foi prometido passagem segura para a Malásia a troco de um pagamento – uma tática usada frequentemente pelos traficantes que visam coagir as pessoas a trabalhos forçados.

“Os rohingya estão de tal forma desesperados que vão continuar a arriscar a vida no mar até que sejam resolvidas as causas que estão na origem desta crise. O Governo da Birmânia tem de pôr fim imediatamente à perseguição que faz aos rohingya”, insta Anna Shea.

Condições infernais

Os rohingya são mantidos em condições absolutamente desumanas e degradantes naquelas travessias marítimas. Os barcos viajam sobrelotados, com as pessoas obrigadas ficar sentadas em posições extremamente desgastantes, em alguns casos ao longo de meses seguidos. Um habitante local, que ajudou a resgatar pessoas de barcos ao largo da costa da província indonésia de Aceh, descreveu que o mau cheiro era tão intenso que os voluntários de salvamento não conseguiam sequer subir a bordo.

Faltava comida e água potável e as rações dadas a estas pessoas nos barcos normalmente não iam além de uma pequena tijela de arroz por dia. Muitos dos rohingya que conseguiram chegar à Indonésia estavam profundamente enfraquecidas, com sinais de inanição e desidratação, dificuldades em caminhar após terem passado tanto tempo em posições de desgaste físico, e sintomas de bronquite e gripe.

Indonésia avançou resposta temporária

Em maio de 2015, a Indonésia, Malásia e Tailândia começaram a empurrar de volta ao mar alto os barcos que se aproximavam das suas zonas costeiras, impedindo o desembarque em terra de milhares de passageiros desesperados. Sob uma vaga enorme de críticas internacionais, a Indonésia e a Malásia acabaram por acordar em permitir a entrada temporária de um certo número de requerentes de asilo, na condição de que outros países os recebam até maio de 2016.

A Indonésia, em particular, canalizou recursos para alojar centenas de pessoas vulneráveis em Aceh, e tem trabalhado para providenciar a assistência essencial a estes refugiados com a cooperação da sociedade civil local e as agências internacionais. Mas permanecem questões muito graves por responder sobre uma solução a longo prazo, pois o Governo indonésio ainda não esclareceu se aquelas pessoas vão poder continuar no país depois de maio do próximo ano.

Recomendações da Amnistia Internacional

“Sem cooperação entre os governos no combate ao tráfico humano, vão voltar a ser cometidos graves abusos de direitos humanos contra algumas das mais vulneráveis e desesperadas pessoas do Sudeste Asiático”, assevera Anna Shea.

Esta perita da Amnistia Internacional aponta que “os governos têm de garantir que as iniciativas tomadas contra os traficantes não põem as vidas nem os direitos humanos em risco, que foi exatamente o que aconteceu em maio de 2015”. “E têm de agir rapidamente para pôr em marcha operações de buscas e salvamento no mar”, prossegue.

A organização de direitos humanos insta os países do Sudeste Asiático a agirem já, e a não esperarem que aconteçam novas tragédias de direitos humanos no mar.

 

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