5 Novembro 2015

A vasta escala e a natureza terrível de como têm sido orquestrados os desaparecimentos forçados de dezenas de milhares de pessoas pelo Governo sírio ao longo dos últimos quatro anos, em plena guerra no país, e a forma como tal tem dado azo a um mercado negro, são expostas em novo relatório da Amnistia Internacional.

“Between prison and the grave: Enforced disappearances in Syria” (Entre a prisão e a cova: desaparecimentos forçados na Síria), publicado esta quinta-feira, 5 de novembro, revela que o Estado sírio está a lucrar com os generalizados e sistemáticos desaparecimentos forçados no país, que constituem crimes contra a humanidade. Isto é feito através de um pérfido mercado negro em que os familiares desesperados que tentam descobrir o destino daqueles que desapareceram são impiedosamente extorquidos.

“Os desaparecimentos forçados feitos pelo Governo fazem parte de um ataque friamente planeado e generalizado contra a população civil. Isto são crimes contra a humanidade e integram uma campanha cuidadosamente orquestrada para espalhar o terror e esmagar o mais pequeno sinal de dissidência no país”, avalia o diretor da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África, Philip Luther.

Este novo relatório da organização de direitos humanos, precisa o perito, “descreve em detalhe angustiante a devastação e os traumas sofridos pelas famílias de dezenas de milhares de pessoas que desapareceram sem deixar rasto na Síria, e da exploração financeira cruel de que são alvo”.

A escala dos desaparecimentos forçados na Síria é lancinante. A Rede Síria para os Direitos Humanos documenta pelo menos 65.000 desaparecimentos desde 2011 – 58.000 destas pessoas são civis.

Os desaparecidos são normalmente mantidos em celas sobrelotadas, em condições terríveis e impedidos de todo e qualquer contacto com o mundo exterior. Muitos morrem devido à propagação galopante de doenças, a tortura ou por execução sumária.

Os desaparecimentos forçados tornaram-se tão comuns na Síria que deram azo a um próspero mercado negro onde são pagos subornos a “intermediários” ou “corretores”, no valor de centenas até dezenas de milhares de dólares, por familiares em desespero para descobrirem o paradeiro daqueles que amam, ou até mesmo para obterem informação se estão vivos ou mortos. Estes subornos são agora “uma parte muito significativa da economia” do país, segundo testemunhou um ativista de direitos humanos sírio aos investigadores da Amnistia Internacional.

Um advogado residente em Damasco, a capital da Síria, avançou por seu lado que os subornos são “uma fonte estável de dinheiro para o regime… uma fonte de financiamento em que eles passaram a confiar”.

Comércio com o sofrimento das famílias

Os desaparecimentos forçados têm visado opositores do Governo, manifestantes, ativistas de direitos humanos, jornalistas, médicos e trabalhadores das agências humanitárias. Outras pessoas têm também sido alvo desta prática por serem tidas como desleais ao Governo ou porque seus familiares são procurados pelas autoridades.

Em alguns casos, e especialmente nos últimos dois anos, os desaparecimentos forçados têm sido usados de forma oportunista como retaliação ou para obtenção de ganhos financeiros, o que alimenta ainda mais o ciclo de desaparecimentos.

Algumas famílias viram-se obrigadas a venderem as suas casas ou entregaram todas as poupanças das suas vidas para pagarem subornos com o propósito de apurarem o paradeiro dos seus entes queridos – às vezes recebendo em troca falsas informações. Um homem cujos três irmãos desapareceram em 2012 contou à equipa da Amnistia Internacional que teve de pedir emprestados mais de 150 mil dólares numa série de tentativas falhadas de descobrir o paradeiro dos familiares. Este sírio está atualmente na Turquia a trabalhar para conseguir pagar aquelas dívidas.

“Além de destruírem vidas, os desaparecimentos forçados estão a alimentar uma economia de mercado negro de subornos que comercializa o sofrimento de famílias que perderam entes queridos. Estas pessoas ficam com dívidas gigantescas e um vazio enorme resultante da perda de quem amam”, frisa Philip Luther.

E os familiares que tentam inquirir junto das autoridades sobre onde se encontram os desaparecidos ficam frequentemente em risco de serem detidos ou de serem também alvo de desaparecimento forçado, o que lhes deixa muito poucas alternativas senão a de recorreram aos “intermediários”.

A Amnistia Internacional apurou que um homem que perguntou às autoridades sobre o paradeiro do irmão acabou por ficar detido durante três meses, tendo passado várias semanas em cela solitária. E uma mulher que se deslocou a Damasco para procurar o filho desaparecido foi detida no caminho num posto de controlo e não se sabe nada dela deste então.

Um amigo do advogado de direitos humanos Khalil Ma’touq, o qual desapareceu sem rasto há dois anos, reportou que os desaparecimentos forçados fazem parte de “uma grande estratégia do Governo para aterrorizar a população da Síria”. A filha de Khalil Ma’touq, Raneem, esteve também desaparecida durante dois meses e passou uma experiência horrível durante a sua detenção.

Conselho de Segurança da ONU tem de passar à ação

Num caso particularmente chocante, Rania al-Abbasi, dentista, foi detida em 2013 junto com os seis filhos, entre os dois e os 14 anos, um dia depois de o marido ter sido detido durante uma rusga feita à casa da família. Nada se sabe destas pessoas desde esse incidente. Crê-se que foram alvo de desaparecimentos forçados por fornecerem assistência humanitária a outras famílias locais.

O relatório “Between prison and the grave” faz um retrato trágico do trauma psicológico, da angústia, do desespero e do sofrimento físico por que passam os familiares e amigos das pessoas alvo de desaparecimento forçado. Saeed, cujo irmão Yusef desapareceu em 2012, contou à Amnistia Internacional que a mãe está sempre a chorar. “Às vezes, a meio da noite, acordo e vejo que ela está a pé, a olhar para a fotografia dele e a chorar”, descreveu.

“Os desaparecimentos forçados fazem parte de uma campanha deliberada e brutal do Governo sírio. Está no poder das autoridades porem fim ao sofrimento indescritível de milhares de pessoas, bastando para isso: darem ordem às forças de segurança para que acabem com os desaparecimentos forçados, informarem as famílias dos paradeiros e destino dos familiares desaparecidos, e libertando imediata e incondicionalmente todos os que estão presos por simplesmente exercerem os seus direitos”, insta o diretor da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África.

Apesar de alguns países e as Nações Unidas terem censurado os desaparecimentos forçados na Síria, é preciso muito mais do que palavras críticas. Há mais de um ano e meio, em fevereiro de 2014, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou a resolução 2139, que insta ao fim dos desaparecimentos forçados na Síria, mas até à data não foram dados nenhuns passos concretos para fazer valer aquela resolução.

“Palavras às quais não se seguem ações concretas não vão ajudar as vítimas dos desaparecimentos forçados. O Conselho de Segurança da ONU tem de apresentar urgentemente o caso da Síria ao Procurador-geral do Tribunal Penal Internacional e aprovar a imposição de sanções, incluindo o congelamento de contas, para pressionar as autoridades sírias a porem fim aos desaparecimentos forçados”, avança Philip Luther.

O perito da Amnistia Internacional aponta ainda que “os países que apoiam o Governo sírio, como o Irão e também a Rússia que lançou recentemente operações militares na Síria, não podem lavar as mãos da imensidão de crimes contra a humanidade e crimes de guerra que estão a ser cometidos com o seu aval”. “A Rússia em especial, cujo auxílio e proteção são essenciais para o Governo do Presidente sírio, Bashar al-Assad, está numa posição única para persuadir as autoridades sírias a porem fim a esta campanha cruel e cobarde de desaparecimentos”, remata.

 

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