22 Agosto 2016

Todos os países têm de garantir que o Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais cumpre em absoluto a promessa de salvar vidas e proteger os direitos humanos dos efeitos devastadores do comércio internacional de armamento, dando passos concretos e transparentes para a sua concretização plena e verdadeiramente eficaz, alerta a Amnistia Internacional, com o arranque da grande Conferência de Estados-parte do TCA, esta segunda-feira, 22 de agosto, em Genebra.

 

 

  • Estados-parte do TCA continuam envolvidos em transferências de armas sem escrúpulos, pondo vidas e os direitos humanos em risco

  • Mais de um quarto dos países vinculados ainda não cumpre a obrigação de declarar os fornecimentos de armas

  • Alguns dos Estados-parte optam por recusar a monitorização pública das transferências de armas que fazem

Até à próxima sexta-feira, centenas de delegados de mais de cem países participam nesta cimeira decisiva, que constitui um momento-chave para os Estados-parte do histórico tratado – que entrou em vigor em dezembro de 2014 – se responsabilizarem mutuamente no cumprimento e total concretização do Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais (TCA, ATT na sigla em inglês), assim como em firmarem acordos para o fortalecer.

“O TCA tem o potencial de salvar milhões de vidas, o que faz com que seja ainda mais preocupante vermos países que assinaram o tratado e que até o ratificaram a parecer que pensam que podem continuar a fornecer armas a forças e grupos que se sabe que cometem ou permitem que sejam cometidos crimes, e a emitirem autorizações de exportação de armamento mesmo para destinos onde existe um enorme risco de essas armas contribuírem para graves violações de direitos humanos”, critica o diretor do programa de Controlo de Armas e Direitos Humanos da Amnistia Internacional, Brian Wood.

O perito da organização de direitos humanos frisa que “tem de haver uma tolerância zero para os países que acham que podem dizer que cumprem o TCA mas não o fazem”. “É dolorosamente óbvio que são necessárias formas de concretização do tratado muito mais eficazes: do Iémen à Síria e ao Sudão do Sul, todos os dias crianças são mortas e horrivelmente mutiladas, civis ameaçados e detidos sob a ameaça de armas, e grupos armados cometem abusos com armas produzidas por países que estão vinculados pelo tratado”, precisa ainda.

Fornecimentos de armas sem escrúpulos

Os Estados Unidos, que assinaram o TCA, assim como vários Estados-membros da União Europeia (UE) – incluindo a Bulgária, a República Checa, a França e a Itália – continuaram a fazer volumosos negócios de armas e de munições, de veículos armados e de equipamento de policiamento para o Egito, mesmo face à brutal repressão de dissidentes levada a cabo pelas autoridades do país que tem resultado na morte ilegal de centenas de manifestantes, milhares de detenções e denúncias de tortura de detidos desde 2013.

Em 2014, por exemplo, a França deu luz verde a autorizações de exportação de armamento que incluíam mais veículos armados Sherpa, os quais tinham sido usados pelas forças de segurança egípcias para matar centenas de manifestantes no protesto que, um ano antes, tinha sido feito na Praça de Rabaa al-Adawiya, no Cairo.

Armas obtidas por países signatários do TCA continuaram a alimentar guerras civis sangrentas em muitas partes do mundo. Por exemplo, a Ucrânia aprovou em 2014 a exportação de 830 metralhadoras ligeiras e 62 metralhadoras pesadas para o Sudão do Sul e, seis meses apenas após a assinatura do TCA, a 19 de março de 2015, as autoridades ucranianas emitiram uma licença de exportação para o Sudão do Sul de um número, não revelado, de helicópteros de ataque Mi-24 – três estão já operacionais nas mãos das forças governamentais sul-sudanesas, as quais aguardam a entrega de pelo menos mais um.

“Ao assinar o TCA, o Governo ucraniano acordou em não agir de formas que minem o objeto e a finalidade do tratado, e nisso inclui-se garantir que não são fornecidas armas quando há a informação de que podem ser usadas para cometer crimes de guerra, incluindo ataques contra populações civis. É impossível compatibilizar as decisões de exportação de armamento da Ucrânia com o que está a acontecer no Sudão do Sul, onde civis que se abrigaram de combates em hospitais e em locais de culto religioso e que estão a viver sob a proteção da missão de paz das Nações Unidas no país foram atacados e mortos”, sublinha o diretor do programa de Controlo de Armas e Direitos Humanos da Amnistia Internacional.

Brian Wood nota também que “é igualmente difícil imaginar como é que países da UE que são Estados-parte do TCA podem ter olhado para a violenta vaga de repressão em curso no Egito e concluir que fornecer armas às forças de segurança daquele país cumpre as regras do tratado”.

Lacunas na informação sobre os negócios de armas

As continuadas falhas por parte de vários Estados-partes do TCA em prestarem a devida informação detalhada sobre as importações e exportações de armas que fazem constituem uma clara violação do tratado. O TCA exige que sejam apresentados dois relatórios específicos pelos países que integram o tratado: o relatório inicial sobre as medidas tomadas para asseverar que são cumpridas as normas a que estão vinculados, incluindo a adoção de leis, regulamentos e outras medidas administrativas no âmbito nacional (devido até dezembro de 2015) e, todos os anos, o relatório pormenorizado de todos os fornecimentos de armas feitos (em 2016, entregue até 31 de maio).

A Amnistia Internacional considera extremamente alarmante que, até 17 de agosto corrente, 27% dos Estados-parte do TCA que já deviam ter entregado os seus respetivos relatórios iniciais continuam a não o ter feito, e outros 27% não entregaram ainda os relatórios anuais sobre as importações e exportações realizadas.

Atualmente, os países que aderiram ao TCA não estão expressamente obrigados a tornarem os relatórios públicos, e o formulário provisório onde devem ser declaradas as importações e exportações de armas permite que indiquem apenas se querem ou não fazê-lo. A Moldávia e a Eslováquia, por exemplo, optaram por manter confidenciais os seus relatórios anuais sobre a importação e exportação de armamento.

“Permitir que os países possam escolher esconder detalhes sobre qualquer das suas importações ou exportações de armas, ou mesmo sobre todas, torna virtualmente impossível que os parlamentos, os órgãos de comunicação social e a sociedade civil avaliem se objetivos fundamentais de direitos humanos estão ou não a ser cumpridos nos fornecimentos de armamento”, sustenta Brian Wood. “Todos os Estados-parte do tratado têm de apresentar os relatórios previstos assim que possível, e têm de os tornar públicos e de acesso livre na internet, assim como explicar as razões pelos atrasos em fazê-lo”, insta ainda o perito da Amnistia Internacional.

Garantias sobre o uso das armas pelos importadores

A organização de direitos humanos exorta a um requisito crucial no âmbito do TCA para que os países exportadores de armas não possam aprovar uma transferência de armamento até que os importadores prestem garantias legalmente vinculativas em que assegurem que o uso final dessas armas será feito em respeito pelos direitos humanos e o Estado de direito.

A avaliação do impacto, caso a caso, das transferências de armas em matéria de direitos humanos não está a ser feita de forma adequada atualmente, como era intenção do TCA.

Por exemplo, o Departamento de Estado norte-americano aprovou, desde março de 2015, possíveis vendas militares de equipamento e prestação de apoio logístico à Arábia Saudita no valor de mais de 24 mil milhões de dólares (mais de 21 mil milhões de euros) e, entre março de 2015 e junho de 2016, o Reino Unido deu luz verde à exportação de armamento para a Arábia Saudita orçado em cerca de 3,4 mil milhões de libras (quase quatro mil milhões de euros).

Estes negócios foram concluídos ao mesmo tempo que a Arábia Saudita estava a levar a cabo repetidos ataques aéreos indiscriminados e desproporcionais contra civis no Iémen, assim como ataques terrestres, que podem constituir crimes de guerra.

“Para salvar vidas, o respeito pelos direitos humanos e pela lei internacional humanitária tem de ser uma condição nas garantias de uso final das armas”, reitera Brian Wood. O diretor do programa de Controlo de Armas e Direitos Humanos da Amnistia Internacional defende que tais “garantias inequívocas também irão mitigar o risco de as armas serem transferidas ou desviadas para grupos não autorizados ou acabarem a ser usadas com propósitos ilegais que podem violar o TCA”.

Vinte anos de pressão e campanha

Ao fim de 20 anos de persistente e determinada pressão institucional e campanhas da Amnistia Internacional e de outras organizações não-governamentais parceiras, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou de forma decisiva o Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais, a 2 de abril de 2013. O histórico acordo entrou em vigor a 24 de dezembro de 2014, tornando-se aí lei internacional para todos os países que o assinaram ou ratificaram.

O TCA é um tratado global que define, pela primeira vez, um leque de condutas proibidas visando com isso pôr fim às transferências internacionais entre países de armas, de munições e equipamentos e material relacionado quando é conhecido que serão usados para cometer ou permitir que sejam cometidos genocídios, crimes contra a humanidade ou crimes de guerra.

As cláusulas-chave em matéria de direitos humanos no tratado estão consagradas no artigo 6, que bane expressamente os fornecimentos e transferências de armas em que existam preocupações de violações de direitos humanos, e no artigo 7, no qual é exigida uma avaliação do risco de exportações de armamento terem “consequências negativas” para a paz, a segurança e os direitos humanos. O TCA não requer uma “ponderação” dos riscos de exportação, antes dita claramente que os Estados-parte do tratado têm de fazer avaliações completas e zelosas do risco de “consequências negativas” de cada uma das potenciais exportações de armas.

Em pouco mais de dois anos desde a aprovação do TCA, um número impressionante de 130 países assinaram o tratado, incluindo 43 que o assinaram mas ainda não ratificaram. O total de ratificações está presentemente em 87, incluindo cinco dos dez países maiores exportadores de armas mundiais: a França, a Alemanha, a Itália, a Espanha e o Reino Unido. Porém, grandes negociantes de armamento como a Rússia e a China não fazem parte ainda do TCA e têm sido fornecedores de regimes ou grupos violadores de direitos humanos.

A Amnistia Internacional participa com uma delegação de sete pessoas nesta Segunda Conferência de Estados-parte do TCA, que decorre esta semana em Genebra. A organização de direitos humanos irá manter a pressão institucional em prol de matérias fundamentais de direitos humanos e irá coligir informação sobre a situação dos países que ainda não ratificaram mas assinaram o histórico tratado.

 

Mais: Os números do comércio global de armas em 2015

 

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