11 Julho 2015

 

Oito mil homens e rapazes foram massacrados há 20 anos em Srebrenica no culminar de três anos de uma guerra brutal marcada por crimes de guerra e genocídio. E a cortina de silêncio e a falta de verdade e de justiça são ainda patentes, tanto mais onde os horrores aconteceram. Steve Crawshaw, diretor de Política Internacional da Amnistia Internacional, conta o que viu e ouviu há 20 anos durante a guerra nos Balcãs e o que ali reencontrou agora.

 

“Um passeio através do Leste da Bósnia parece repleto do charme vagaroso dos Balcãs. A paisagem em volta é de colinas arborizadas, pequenas quintas, imensos pomares de ameixas. A estrada corre através dos campos ao longo do calmo rio Drina. Dos bosques soa o piar de um cuco num dia de verão. Tudo é tranquilo.

E como é habitual acontecer, a paisagem engana. Há 20 anos, este cenário idílico foi palco de um dos mais graves crimes cometidos em solo europeu desde 1945. O mundo olhou para o lado enquanto o genocídio ocorria dentro e em volta da cidade de Srebrenica.

Foi aqui que mais de 8.000 homens e rapazes bósnios foram mortos numa série de execuções e massacres que aconteceram nos dias que se seguiram à tomada de Srebrenica pelas forças militares sérvias bósnias, a 11 de julho de 1995. E quase uma geração depois, continua a não se perceber se as feridas já começaram sequer a sarar.

As forças sérvias bósnias que assassinaram os seus vizinhos muçulmanos, fizeram-no de forma metódica e com uma vingança literal. À chegada à cidade, o general Ratko Mladic, comandante do exército sérvio bósnio, disse aos seus homens: ‘Tomamos esta cidade para a nação sérvia… chegou a hora de nos vingarmos dos turcos’. Fique aqui o pequeno detalhe histórico de que os muçulmanos bósnios são, na verdade, etnicamente eslavos.

A vaga de assassinatos que se seguiu foi o culminar de um pesadelo que se arrastava há três anos para a cercada população de Srebrenica.

Dois anos antes da queda da cidade, o general francês Philippe Morillon [comandante das forças das Nações Unidas na Bósnia entre 1992 e 1993] tinha visitado Srebrenica e garantido à população reunida para o ouvir que a ONU os manteria a salvo dali em diante. O Conselho de Segurança das Nações Unidas declarara a cidade uma zona protegida. Um antigo morador recorda como se sentiu excitado ao ouvir Morillon naquele dia: ‘Pensei que tínhamos todos de celebrar. Era como se estivéssemos a nascer de novo!”

A realidade veio a mostrar-se bastante diferente.

Quando as forças sérvias bósnias decidiram invadir a cidade, as Nações Unidas recusaram-se a enviar os aviões que as forças de paz holandesas, no terreno, pediam. As forças de paz da ONU discutiram com os sérvios bósnios. E depois fugiram. Sem nenhuma proteção nem defesa da cidade, as forças sérvias bósnias foram de uma conduta minuciosa nos dias seguintes. A certa altura, as execuções que estavam a fazer e a filmar foram interrompidas até que alguém fosse de carro buscar uma bateria nova para a câmara, e só então continuaram com o massacre.

Numa das muitas imagens terríveis dessa altura, sérvios filmaram um aterrorizado muçulmano bósnio a chamar aos gritos através dos campos pelo filho e outros que com ele se tinham escondido para que saíssem dos esconderijos em que estavam nos bosques em redor.

‘Nermin, vem cá, estou aqui!’, grita Ramo Osmanoviz, enquanto os captores sérvios olham em volta e o instruem sobre o que dizer. ‘Vem cá Nermin! Não tenhas medo!’ Os corpos do pai e do filho foram encontrados mais tarde em valas comuns.

Juízes em Haia ouviram “cenas do inferno”

Os testemunhos feitos pelos sobreviventes são absolutamente brutais: “cenas do inferno, escritas nas mais negras páginas da história”, descreveu mais tarde um juiz no tribunal de Haia. Aqueles que saíram dos esconderijos foram mortos a tiro, enforcados ou torturados e deixados para morrer – às vezes com explosivos armadilhados em volta para matar também quem quer que tentasse salvá-los. Os corpos foram empilhados por bulldozers e depois largados em valas por toda a região.

Em alguns aspetos pode sentir-se que já é possível seguir em frente. Os crimes, classificados como genocídio pelos tribunais internacionais, são recordados em Srebrenica este 11 de julho, em eventos em que participam milhares de sobreviventes e líderes políticos de todo o mundo. Esta semana mesmo, o Conselho de Segurança levou a debate e votação uma resolução proposta pelo Reino Unido que instava à necessidade de classificar o que se passou como um genocídio [a Rússia, porém, vetou esta resolução, no que a Amnistia Internacional considerou ser “um insulto à memória dos mortos”].

Srebrenica não pode, de qualquer modo, ser vista isoladamente. Foi sim o culminar de uma longa e mortífera série de acontecimentos. Atente-se num pequeno exemplo: em julho de 1992, as autoridades sérvias bósnias publicaram na cidade de Celinac, no Norte da Bósnia, vários editais que deixavam logo bem claro o que estava por vir – todos os não sérvios da Bósnia ficavam proibidos de poder circular pela cidade depois das 16h; proibidos de nadar e de pescar nos rios locais; proibidos de se juntarem em grupos com mais de três pessoas; proibidos de vender ou trocar apartamentos; proibidos de comunicar com outras pessoas de fora da cidade… e assim em diante, numa linguagem que parecia saída de um livro nazi. E mais um édito ainda: ‘Desrespeitar as decisões terá consequências de acordo com os regulamentos válidos’.

O termo ‘limpeza étnica’ tornou-se num eufemismo oficial. Rapidamente, como uma ‘Solução Final’ meio século mais tarde, aquele eufemismo era um poderoso código para a mortal realidade: uma mistura de medo, de fuga e de assassinatos.

Entrevistar o líder político dos sérvios bósnios Radovan Karadzic naquela altura foi uma experiência surreal. Numa das ocasiões, Karadzic asseverou que não havia atiradores furtivos sérvios nas colinas em redor de Sarajevo. A verdade é que os snipers sérvios bósnios aterrorizavam a população da capital da Bósnia, tal como eu mesmo e muitos outros testemunharam. E a limpeza étnica dos muçulmanos – alegou Karadzic – era humana: ‘Nós deixamo-los ir embora, e com as malas e tudo”, explicou, alegremente.

Os campos de concentração, as violações em larga escala, a limpeza étnica em curso por todo o país: foi esse o padrão dos acontecimentos nos anos que se seguiram. O mundo entretanto marcava passo e continuava a conversar sobre a próxima ronda de discussões de ‘acordos de paz’, em Genebra e por todo o lado.

Finalmente, ao fim de três anos de evasivas, as mortes de Srebrenica – e a vergonha internacional a elas associada – revelaram-se um ponto de inflexão. Foi então martelado um acordo entre todas as partes envolvidas no conflito na Bósnia, em conversações na base da força aéra norte-americana de Dayton, no Ohio. A guerra já com três anos, que custara dezenas de milhares de vidas civis, chegava ao fim. E pareceu que a Bósnia – e Srebrenica – podiam começar a reconstruir as suas vidas.

Atualmente existe um centro de memória do genocídio em Srebrenica. Nesse local, uma antiga fábrica que serviu de base às forças de paz da Nato, estão patentes várias exposições. Num cemitério da cidade foram enterrados os milhares de cadáveres exumados nos anos recentes das valas comuns.

De alguma forma parece ter havido também um reconhecimento internacional. O antigo Presidente da Jugoslávia e líder nacionalista sérvio Slobodan Milosevic, que ficara espantado quando lhe perguntei se imaginava vir um dia a responder em tribunal por acusações de crimes de guerra – ele era ‘pela paz’, frisou –, acabou por ser acusado por genocídio [no Tribunal Penal para a ex-Jugoslávia, TPI-J], em Haia,e morreu atrás das grades. [O comandante militar sérvio] Ratko Mladic e [o líder político dos sérvios bósnios] Radovan Karadzic, que passaram anos escondidos e em fuga do mandado de captura das instâncias internacionais, estão ambos a ser julgados em Haia por genocídio. A sentença de Karadzic é esperada dentro de alguns meses. E as sentenças nestes casos podem alentar alguma espécie de ‘desfecho’.

“Não estava lá, não ouvi nada, não sei nada”

Mas, como esta visita agora a Srebrenica mostra claramente, ainda há muito por fazer. Antes da guerra, a cidade tinha uma população de três quartos de muçulmanos. Hoje, os sérvios são a maioria. E poucos deles estão dispostos a admitir o que ali aconteceu.

Uns quilómetros para norte de Srebrenica fica a vila de Kravica. Logo à beira da estrada principal, há uma série de edifícios, e num deles um sinal já desgastado que indica ter sido ali a Cooperativa Agrícola de Kravica, ainda antes da guerra. Há vacas e cabras a vaguearem pelo meio dos equipamentos agrícolas. À primeira vista, estes edifícios não têm nada de interessante. Mas demora pouco até se notar que as paredes estão cheias de buracos de balas.

Foi para aqui que mais de mil homens e rapazes muçulmanos foram trazidos desde Srebrenica e mortos em 1995. O general Mladic dissera-lhes que iam ser transferidos para território bósnio e reunificados com as famílias. Em vez disso, foram executados, com espingardas automáticas e granadas de mão. Um sobrevivente do massacre de Kravica, que fora deixado pelas tropas sérvias bósnias como morto, contou ao tribunal em Haia que andou ‘por cima dos corpos dos mortos’ para sobreviver.

Tudo isto está nos registos históricos. Porém, ao falar com os habitantes locais, todos dizem não saber de nada. Uma mulher que tomava conta de alguns animais naquele local em Kravica explica que não estava lá, não ouviu nada, não sabe nada. Nota que é frequente aparecerem ali visitantes estrangeiros e que lhe fazem perguntas, mas, repete, ela não estava lá, não ouviu nada, não sabe nada. Só quando se lhe fala em Karadzic e Mladic é que ela reage mais animadamente: não deviam ter sido levados para Haia, defende; aqueles dois homens estavam apenas ‘a defender o povo sérvio’.

Num café sérvio em Srebrenica, outra história parecida: ‘Consideramos Mladic e Karadzic nossos heróis’, sustenta um homem de 43 anos. Mladic ‘salvou milhares de vidas civis’, continua. Qualquer outro relato, garante um outro homem, não passa de ‘mentiras e fantasias’.

As pessoas neste café estão muito mais interessadas em falar sobre a detenção feita no mês passado na Suiça de Naser Oric, antigo comandante muçulmano bósnio que foi também acusado de crimes de guerra. Pode ter havido alguns ‘erros’ cometidos pelo lado sérvio, concedem, mas não mais do que isso. Um dos homens no café trabalha na fábrica que fica ao lado do centro memorial – não, explica, nunca foi ver a exposição para ver os factos sobre o que se passou em Srebrenica.

A relutância em confrontar a verdade sobre crimes horríveis não é nada de novo, claro. Em abril de 1945, a escritora e jornalista norte-americana Martha Gelhorn contava, durante uma viagem à Alemanha, com profundo sarcasmo: ‘Ninguém é nazi aqui. Ninguém jamais o foi… ‘Não temos nada contra os judeus, sempre nos demos bem com eles’ parece soar bem acompanhado de música’.

Aparte as diferenças óbvias quanto à escala dos crimes cometidos – milhões de civis mortos às mãos do regime nazi e ‘apenas’ dezenas de milhares na guerra da Bósnia –, há um outro muito importante contraste entre a Alemanha pós-1945 e os Balcãs hoje em dia. Duas décadas depois da II Guerra Mundial, o desenvolvimento de uma nova geração significava que a Alemanha estava a começar já a fazer a si própria perguntas muito difíceis sobre a sua história.

O então chanceler Willy Brandt, que resistira ao nazismo desde o início, visitou Varsóvia em 1970 e prostrou-se de joelhos em frente ao memorial das vítimas do regime nazi, no gueto judaico, para expressar arrependimento e pesar – o famoso e histórico ‘Kniefall’ [ajoelhar, em alemão]. Este gesto foi contramaré: sondagens de opinião feitas na altura mostraram que a maioria dos alemães achou que Brandt não devia ter feito penitência. Mas aquele gesto extraordinário do chanceler marcou o princípio de uma honestidade histórica que é basilar para a estável e pacífica Alemanha que hoje em dia conhecemos.

Campanha difícil mas imperiosa pelos milhares de desaparecidos

Já nas lideranças atuais da Bósnia e da Sérvia, em oposição, não há nenhum sinal de surgir um ‘Willy Brandt’: um líder que compreenda a necessidade de mais verdade para o bem de todas as partes e que esteja pronto a assumir os riscos políticos para aí chegar.

Há alguns ténues raios de luz. O Presidente da República Srpska [entidade sérvia da Bósnia, de que Srebrenica é agora parte integrante], Milorad Dodik, visitou a cidade do massacre de 11 de julho em abril passado, e ali referiu os ‘crimes’ cometidos e disse ‘ter pena por todas as vítimas’. Mas não soou assim tão penitente e, mais recentemente, descreveu mesmo a atenção dada a Srebrenica como ‘o grande engano do século XX’.

E de Belgrado, as mensagens são igualmente mistas. O Presidente sérvio, Tomislav Nikolic, deu uma entrevista em 2013 na qual pediu desculpa pela primeira vez pelos ‘crimes’ cometidos – o que de certa forma constituiu um enorme passo em frente. Mas também frisou que não houve genocídio. E isto é muito mais do que um pormenor. Tanto literalmente como metaforicamente, os líderes da Sérvia e da República Srpska recusam-se a admitir onde é que os mortos estão enterrados.

Não há praticamente nenhum apoio político – e menos ainda pressão política – para que as pessoas sejam honestas sobre o passado. Bem pelo contrário. O local de um enorme massacre no Norte da Bósnia, descoberto e escavado nestes últimos dois anos, dá um exemplo bem vívido do continuado silêncio.

Foram descobertas centenas de cadáveres no complexo mineiro de Tomasica, perto dos infames campos de Omarska e de Trnopolje. A vala comum foi encontrada apenas depois de um dos envolvidos na matança vir dizer que não conseguiu permanecer calado sobre o que se passara. Contou ser ‘assombrado’ pelos olhos de uma rapariga que tinha morto 20 anos antes.

Um repórter da organização não-governamental Balkan Investigative Reporting Network [Rede de Repórteres de Investigação dos Balcãs] que trabalha incansavelmente em busca da verdade, da justiça e da reconciliação na região, visitou Tomasica após as escavações terem começado. Ninguém tinha vontade de falar com ele sobre os acontecimentos históricos. Um homem citou-lhe mesmo um provérbio bósnio: ‘Fica calado, que há quem te possa ouvir’.

Esta recusa em falar, sobre Srebrenica e outros massacres no país, significa que há demasiadas pessoas que ficaram não apenas com a perda de um ente querido mas também com a dupla dor que é gerada pelos desaparecimentos forçados, em que os familiares, sem uma campa para visitar, não conseguem alcançar o ‘desfecho’.

Neste 20º aniversário do massacre de Srebrenica, a Amnistia Internacional lança uma campanha pelas estimadas 8.000 pessoas que continuam dadas como desaparecidas por toda a Bósnia, incluindo os mil de Srebrenica. Vai ser uma batalha muito difícil no atual contexto, até devido aos jogos políticos que são feitos pelos responsáveis políticos de todos os lados, tanto na Bósnia como na Sérvia.

Há 23 anos, o título do artigo que escrevi para a revista [de sábado do jornal] The Independent reportava que ‘A esperança morre em Sarajevo’ e ali expunha o que os bósnios interpretavam na altura como a determinação do mundo em olhar para o lado. O mundo falhou-lhes então, ao recusar-se a exercer pressão quando essa pressão era tão necessária. E hoje em dia, a Bósnia pode até parecer enganosamente tranquila. Mas para se alcançar alguma espécie de estabilidade nos Balcãs, a necessidade de verdade e de justiça continua hoje a ser tão urgente como antes.”

Este artigo foi publicado originalmente no diário britânico The Independent.

 

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