11 Dezembro 2014

O falhanço das autoridades da República Centro Africana e das Nações Unidas em investigarem eficazmente os crimes de guerra cometidos no país está a perpetuar o ciclo de violência e de medo, é sustentado em novo relatório a Amnistia Internacional.

“Central African Republic: Impunity is fuelling violence” (República Centro Africana: a impunidade está a alimentar a violência), divulgado esta quinta-feira, 11 de dezembro, e fruto de uma missão de investigadores da Amnistia Internacional à República Centro Africana, detalha a forma como líderes e membros de grupos armados continuam a cometer atrocidades e a desrespeitar o Estado de direito naquele país de África.

E isto verifica-se mesmo após a organização de direitos humanos ter publicado, em julho passado, provas que suscitam suspeitas razoáveis do envolvimento de vários combatentes rebeldes em graves abusos de direitos humanos, incluindo crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

“A falha em levar à justiça aqueles que estão envolvidos na morte de civis, no uso de crianças soldados e a destruição de aldeias significa que estas pessoas não apenas podem continuar impunes em liberdade mas também que lhes é permitido continuarem a aterrorizar a população sem quaisquer receios de repercussões”, explica o vice-diretor da Amnistia Internacional para a Região da África Central e Ocidental, Steve Cockburn.

No relatório de julho de 2014, a Amnistia internacional reuniu informações onde são citados 20 indivíduos – incluindo comandantes das forças Séléka (coligação de grupos armados, maioritariamente muçulmanos, que depôs o Presidente François Bozizé em março de 2013) e também das milícias anti-balaka (maioritariamente cristãs) – contra os quais existem provas credíveis que os tornam suspeitos em crimes de guerra, crimes contra a humanidade e outros graves abusos de direitos humanos cometidos na República Centro Africana desde dezembro de 2013.

Logo aí, a organização de direitos humanos instou a que fosse criado um “tribunal híbrido” especial – que incluísse juízes do país e internacionais – para julgar os suspeitos dos crimes mais graves. A Amnistia Internacional pediu também então que se verificasse um fortalecimento dos tribunais da República Centro Africana e a mais profundas investigações no seio do Tribunal Penal Internacional.

Suspeitos identificados

Agora a Amnistia Internacional possui dados que permitem revelar mesmo que alguns daqueles suspeitos estão envolvidos em processos de interferência com a aplicação da justiça e ainda mais crimes ao abrigo da lei internacional, não apenas em Bangui, a capital do país, mas também em outras partes da República Centro Africana entre setembro e outubro de 2014.

Os investigadores da Amnistia Internacional documentaram extensivamente alguns destes suspeitos e a forma como continuam a gozar do clima de impunidade na República Centro Africana:

  • Patrice Édouard Ngaïssona – antigo ministro da República Centro Africana e autoproclamado coordenador das milícias armadas anti-balaka. Segundo várias fontes, Ngaïssona continua a liderar as atividades de muitos anti-balaka no país, incluindo um grupo envolvido na morte de civis e em ataques contra as forças internacionais durante a vaga de crescendo da violência que se registou em outubro de 2014. Os grupos armados anti-balaka sob o controlo de Ngaïssona são suspeitos de terem cometido graves violações de direitos humanos, incluindo a morte de civis em Bangui. Ngaïssona é ainda suspeito de ter usado o seu estatuto para obter concessões por parte das autoridades de transição, em que se inclui a libertação de quatro combatentes de topo dos anti-balaka que estavam presos – só após pressão das autoridades judiciais no país e da comunidade internacional é que o governo de transição recuou em satisfazer aquela exigência. Ngaïssona tinha antes sido acusado pelas autoridades de transição de “integrar um grupo armado ilegal e de posse ilegal de armas” e chegou mesmo a ser detido por um curto período de tempo em abril de 2014. Apesar de ter sido emitido um mandado para a sua captura pelo Governo anterior, por “crimes contra a humanidade e incitamento ao genocídio”, que aliás foi confirmado pelas atuais autoridades de transição, o antigo ministro continua a ter um papel significativo nas negociações políticas no país.

  • “Colonel Douze Puissances” – antigo comandante dos anti-balaka que, de acordo com múltiplas fontes, entre testemunhas e sobreviventes, chefia um grupo de guerrilheiros que matou três civis, feriu gravemente outros pelo menos 20 e deitou fogo a 28 casas e uma igreja no bairro de Nguingo, em Bangui, a 14 de outubro de 2014. Este comandante, conhecido apenas pela alcunha, que significa “12 Volts”, já antes foi identificado pela Amnistia Internacional como suspeito de ter estado envolvido em violações de direitos humanos em dezembro de 2013, quando chefiava grupos de guerrilheiros anti-balaka na zona de Boy-Rabe, na capital.

  • Alfred Yekatom “Rambo” – é outro comandante das milícias anti-balaka que continua ativo em toda a região de Bimbo, nos arredores de Bangui, e que de acordo com várias fontes locais atacou a esquadra da polícia daquela cidade a 29 de outubro de 2014, onde roubou equipamento e ajudou pelo menos cinco presos a evadirem-se. A Amnistia Internacional considera que este ataque é prova da capacidade de Alfred Yekatom interferir com as forças de segurança da República Centro Africana, as quais têm a obrigação de investigar as alegações sobre a sua responsabilidade criminal em crimes consagrados na lei internacional. A organização de direitos humanos já identificara “Rambo” como suspeito de ter morto civis e recrutar crianças-soldados em Mbaiki, região no sudoeste do país, a 105 km de Bangui, entre dezembro de 2013 e maio de 2014.

“Em vez de temerem serem julgados ou punidos, os suspeitos de terem cometido crimes de guerra veem e usam a violência demasiadas vezes como uma forma de chegarem ao poder, de conseguirem obter recursos e até mesmo manterem-se protegidos da justiça. Se não se puser fim à impunidade na República Centro Africana, as graves violações de direitos humanos no país não vão diminuir”, defende Steve Cockburn.

Prioridade no Tribunal Penal Especial

Já foi alcançado algum progresso no acordo entretanto firmado entre as autoridades de transição do país e as Nações Unidas para criar um Tribunal Penal Especial nas linhas do “tribunal híbrido” recomendado pela Amnistia Internacional em julho de 2014, mas esta instância ainda não está operacional devido à falta de financiamento. Além disso, a legislação de enquadramento desta instância têm de respeitar os padrões internacionais para garantir que o tribunal funcionará na prática de forma independente, imparcial e eficaz.

Tanto as Nações Unidas como as autoridades da República Centro Africana têm de conduzir consultas, incluindo as organizações da sociedade civil, no processo legislativo do tribunal assim como sobre a composição do proposto Tribunal Penal Especial, para asseverar que esses padrões são cumpridos.

“As Nações Unidas e as autoridades da República Centro Africana têm de agir com urgência para garantir que todos aqueles que são suspeitos de cometer crimes ao abrigo da lei internacional – incluindo crimes de guerra e crimes contra a humanidade – são investigados prontamente, independentemente e de forma eficaz. E para que isto aconteça, a comunidade internacional têm de dar o seu apoio ao prometido Tribunal Penal Especial e garantir que a instância começa a funcionar sem demora”, remata o vice-diretor da Amnistia Internacional para a Região da África Central e Ocidental.

Apesar de a maioria dos suspeitos identificados pela Amnistia Internacional no novo relatório “Central African Republic: Impunity is fuelling violence” terem ligações às milícias anti-balaka, grupos armados das Séléka continuam igualmente a cometer graves violações de direitos humanos, que têm também de ser investigadas. Os investigadores da Amnistia Internacional documentaram massacres cometidos em outubro de 2014 tanto pelas Séléka como pelas anti-balaka nas cidades de Dekoa (na foto) e de Bambari, na zona central do país, que têm de ser forçosa e rapidamente investigados.

 

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